sábado, 29 de dezembro de 2007

BOA VIAGEM

FOZ DO IGUAZU








É PRECISO PARAR PARA VER



COMO SE ANDA



MAS O TEMPO NÃO PÁRA



NEM NOS APEADEIROS



BOA VIAGEM




quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

O PAÍS EM ALTA TENSÃO

alta tensão




Após tantos anos de promissoras promessas incumpridas

o chefe da maioria esmagadora,sorridente - brilha - perante

um Menezes,que ao invés de condenar princípios e métodos

de governação,reza de bandeja,por esmolas - como um triste.

Abdica de ser oposição credível para falar manso e grosso-

o que não espanta.


Entretanto a REN,empresa destinada a enterrar cabos

eléctricos,que a céu aberto têm lesado muita gente - vai propor

ao chefe um aumento de 40% aos consumidores.Uma vez mais

para o chefe não concordar com tão elevada percentagem.


O país assim bipolarizado está no limite da paciencia

mas ainda talvez distraído vá apascentar uma nova guerra

de alta tensão.


terça-feira, 25 de dezembro de 2007

QUEM NOS DESANDA?

o puma






Meu deus

porque somos tão criativos?



Quem nos desanda?



Quem anda nos meus pés

a trilhar caminhos que são meus?



Quem nos desanda?



São os teus pés


nos meus?








terça-feira, 18 de dezembro de 2007

BOTAS





DEZEMBRANDO


VOS DESEJO


AS MELHORES JANEIRAS

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

ERA UMA VEZ O NATAL





Lá em casa,há mais de cem anos foi assim que me contaram.


Era uma vez o Natal.O dia do inverno branco e da generosa lareira

em família.Uma festa de silêncios incontidos e muitas histórias de pasmar.


Lá em casa ninguém rezava,mesmo nos momentos mais difíceis -

muito menos se pedia seja o que for ao menino Jesus.


Era uma festa bonita sem presépio onde nunca faltou um pinheirinho

com luzes de velas a incendiar os nossos olhos.A casa ficava cheia de amanhãs.


Há mais de cem anos,foi assim que me contaram - e talvez por isso -

ontem decidimos que era Natal.


Convoquei o meu cão de barro para o convívio em família.Destinei-lhe

um lugar nobre,junto à lareira.


Foi minha convicção que ali poderia ajudar com o brilho dos seus olhos

a dar mais cor ás cabeleiras do lume e ser amaciado de quando em vez

pelas mãos de veludo da nossa avó.


O Dique,firme no seu posto de vigília,aguardou paciente,leal e reconhecido

pelas doze badaladas do relógio de pêndulo.Participou em silêncio na orgia

das prendas,nas graças familiares,no acender e apagar das velas,no azinho

que ciclicamente alimentava a lareira,na festa coletiva - quando foi colocada

a descoberto a fava do bolo rei - e até achou meigo o beliscão que um dos

putos lhe deu numa das orelhas.


O Dique resistiu como um cavalheiro competente a todas as euforias.

Só não resistiu ao piscar de olhos de uma gata de peluche que lhe miou

em falsete qundo eu precisamente - lhe dei corda.


O Dique - cão de barro habituado a todas as intempéries,resistente a todas as estações do ano,com provas dadas no terreno,pastor de rebanhos inventados

protagonista de sonhos acordados - respeitado por saber ouvir -

cedeu ontem pela primeira vez na vida.Cedeu à ternura da gata e deixou

cair um dos seus olhos de esmeralda chinesa.


Era Natal mas nem por isso a nossa avó deixou de reagir - e de imediato disse com voz grave mas muito terna.


O Dique apaixonou-se pela gata.


Na verdade a avó não mente e a família assim despertada para o evento

só podia fazer o que fez.Cantou um poema de Natal.


O brilhante chinês foi de novo colocado com afecto no olho esquerdo

do Dique.


Aconchegámos os dois num caixote com palhas e ficámos assim

comovidos e a festejar.


Todos menos eu - que também já estava a gostar da gata.





sábado, 8 de dezembro de 2007

NOITE DE LUZ












És bela de tão pouco

noite de luz

branca

ondulada

à saída dos corais

nas águas lavadas

que fremem espumas



Vejo-te clara

ao longe

e já te sorvo macia

nos caminhos da praia



Oiço-te pé ante pé

a marulhar

salivas desmaiadas

no sítio das areias



És bela de tão pouco

noite de luz

branca

quando tentas desvendar

no secreto coração das aves

o melhor destino dos lábios



sobretudo no fogo

os relâmpagos

onde se deitam




terça-feira, 4 de dezembro de 2007

CUIDADO - MORALISTAS À SOLTA





Todos querem viver mais tempo,mesmo que seja à porta das farmácias
com reformas de miséria,impedidos do acesso aos medicamentos.


Obviamente que não defendo quem fuma,nem o contrário
- defendo isso sim o direito privado à livre escolha,o respeito pela diferença
- porque todos - pelo menos em tese - temos direitos iguais e pagamos
impostos.

Não há nada pior para fumadores e não fumadores que a tirania e a arrogância.Os moralistas andam por aí à solta e constituem um perigo
para a vida em sociedade.

Um dia vão lembrar-se de proibir o alcool,o sal,o açucar e as saídas
à rua depois da meia noite.
Sem nos apercebermos (?) cada vez mais vivemos em sociedades
vigiadas por fanáticos,donos absolutos das nossas vidas privadas
moralistas sem espelho e mercadores.




















segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

CHAVEZ VERSUS SÓCRATES






O que a maioria esmagadora,aliada aos arrependidos de Sá Carneiro

pretendem para o poder local - limitação de mandatos - o que é aberrante

do ponto de vista da vontade das populações sufragada por voto secreto nas

urnas eleitorais - é precisamente o contrário que Chavez pretendeu introduzir

na lei,no seu país.


O eleitorado na Venezuela entendeu,pela margem de 0,7% que não -

isto é - o eleitorado entendeu que Chavez queria - não a possibilidade da

livre escolha,mas a sua perpetuação no poder.


Por cá a ideia é limitar por via administrativa os mandatos - isto é -

as tribos geminadas no poder,meia dúzia de rapazes,querem decidir pelas

populações.


Na Venezuela - por 0,7% o eleitorado teve medo de Chavez.Por cá -

nos passos perdidos,meia dúzia de rapazes instalados demonstram medo

da livre vontade das populações.


Admito que o eleitorado da Venezuela,mesmo por uma margem de 0.7%

se entenderia bem com Sócrates.




sábado, 1 de dezembro de 2007

ASAS REMOS E PASSOS










OS MEANDROS DO RIO



SÃO ARGOLAS



AZUIS EM REDOR



DOS OLHOS



OS BARCOS AJUDAM



O RUMOR DAS ÁGUAS



AS AVES DANÇAM TRAJECTÓRIAS



SEM APEADEIROS DE MASTROS





QUE BOM ESTE CANSAÇO



MOVIMENTO



DE ASAS REMOS E PASSOS




terça-feira, 27 de novembro de 2007

NO CHÃO SENHORA

foto de ana limp








Chegámos a este ponto . , - a este rio,a este riso com duas margens,



a esta floresta de silencios impenetráveis para os olhos,a este palco de palavras,



sonos e sonhos.





O dia é aqui o que menos importa,por isso digo apenas - chove como



um rio nas bocas abertas,nos olhos molhados.





As pessoas no subúrbio,correm,passam,trespassam,desandam de si,



consigo e do tempo que faz.





Chegámos a este ponto ., - a este rio com duas margens e uma ponte.



Aponte.A ponte.





Debruçadas - as pessoas - todas a olhar,apenas a olhar,no espelho do rio,



este riso com duas margens - só para se verem projetadas no insólito,



só para verem - gravatas tristes no tronco cinzento dos eucaliptos.





- É urgente acordar.

- Acordámos?

- Que dia é hoje?

- Pára-me esse motor,já me basta o ritmo das estações,o resto das unhas

roídas,espalhadas na mesa - e o empregado à espera - à espera porquê? -

de uma nesga de sol que lhe afague a bandeja de migalhas.

- Mas esta lágrima é sua ou fui eu que a inventei?

- Cinco euros para te retirares.

- E a lágrima?

- Paguei para te calares.

-Estava no chão,senhora.

- Morre,eu paguei.





CAI O PANO



NÃO EXISTE PANO



O TEMPO PASSA







domingo, 25 de novembro de 2007

HUMANIDADE NÃO TEM SEXO


ana luisa kaminski








PELA IGUALDADE



ABAIXO A VIOLÊNCIA DE GÉNERO



A HUMANIDADE NÃO TEM SEXO




quinta-feira, 22 de novembro de 2007

ÁGUA EM VEZ DE CHUVA

renoir










São cabelos em tranças

velocíssimos rios suspensos

esta chuva magoada



que se desprende

no declive da aragem

e nos afoga



ou somos nós

de tanto olhar

em pleno voo



a respirar um sono profundo

enquanto o musgo cresce

e nos invade a fala



no preciso momento

em que inscrevemos no corpo

palavras infinitas



raios de luz

vestigios de incêndios

que apodrecem nos teus cabelos



ou somos nós

esta chuva incolor



com vergonha de ser água








terça-feira, 20 de novembro de 2007

OTA - POR UM MAÇARICO

maçarico de bico direito








Na selva dos grandes interesses e frágeis argumentos para a não localização



do novo aeroporto em Alcochete,a engenharia canora descobriu - só agora -



o maçarico de bico direito.



Não resisto a perguntar-me,a perguntar-vos - o que alguém já perguntou





ONDE VAI FICAR O AEROPORTO DA OTA?




domingo, 18 de novembro de 2007

AMAR UMA PEDRA

white rock










Todas as fendas da água



dão guarida ao movimento e se desnudam



enquanto a pedra partilha os seus esconderijos





Na respiração do azul



onde os peixes se eternizam



partem anémonas para os silos dos sonhos



mas só algumas pautas musicais



quebram o ritmo das marés



quando as mãos se tocam



para atear fogueiras dentro de nós





Todas as fendas da água



levedadas



entoam hinos



e se transformam na síntese de outros cânticos





Só assim se explica como é possível



amar uma pedra




quinta-feira, 15 de novembro de 2007

SARKOZY - TAMBEM POR CÁ

foto-Ricardo Oliveira/gpm








Após um matrimónio feliz nas urnas eleitorais



a direita política aplaudiu o que parecia um casamento



em comunhão de bens.



Entretanto Sarkozy enfrentou um divórcio por mútuo acordo



com a senhora sua esposa.



Agora,ainda não refeito,enfrenta um divórcio litigioso com os trabalhadores



e os estudantes - que lhe dão muito mais luta.



A reforma da administração pública



tal como cá - é uma prova de fogo



para a direita política.







O FIO DA MEADA ( 5 )

manneken pis








O frio era tanto em Bruxelas que até o Manneken Pis ostentava



um arco gelado de água potável em vez do célebre mijo corrente



que o tornaram lendário.



Devotos e de olhos perfeitamente vidrados,os basbaques



disparavam ofegantes máquinas fotográficas e tentavam interpretar



de vários ângulos a "religiosidade" do fenómeno.



Na verdade o menino não mijava conforme a lenda.



De repente,o arco gelado - quebrou-se - fulminado



por uma gargalhada estridente de um turista.



Só podia fazer o que fiz - comovi-me perante o lancinante



e dramático coro de lágrimas da assistencia,sem conter um sorriso



quando alguém delirou



Milagre.



Finalmente a estátua mijava.







quinta-feira, 8 de novembro de 2007

CLARIDADES

gota-em-vermelho








Os objetos movem-se



nas paredes da casa



enquanto a luz vertebrada da vela



se consome em babas de cera





Porque somos frágeis como o cristal



e por vezes mais fortes que o seu brilho



nas cabeleiras deste lume



ardem palavras de sonho



mas não as suas claridades






O FIO DA MEADA ( 4 )

Luiz XIV - o rei sol

deu brilho e charme a Paris.

A cidade luz cintila até nas belas pernas das mulheres.

Aqui a noite está naturalmente escura

mas vejo bem como os gatos e as estrelas.

Apesar de tudo optei em alternativa por experimentar


cuisses de grenoville ao jantar.


Obviamente - entrei no hotel a saltitar.

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

FALAR NO SILENCIO

foto de gamini kumara








O céu quase sem altura



poisa no chão



a brandir asas e refulgências





a terra abre-se sedenta



em papoilas de água



para os lábios





o mar puríssimo



ergue-se em partículas



de alaúdes e violinos





São os primeiros acordes



nas bocas rasgadas



e agora?





que vai ser de nós minha pedra preferida



se não aprendermos a falar



nos mesmos silencios


segunda-feira, 29 de outubro de 2007

MEU CÉU MEU CHÃO

salvador dali










ONDE SE GERA A METAMORFOSE



ARDE NO FOLGOR DO VOO



O PERFIL DA LUZ





ONDE SE GERA A METAMORFOSE



ALUMIAM AS PEDRAS



QUE DEVAGAR SE AMONTOAM



PARA ATIRAR AOS PÁSSAROS



INTANGÍVEIS





ONDE SE GERA A METAMORFOSE



ESTÃO OS OLHOS QUE TRAGO



AO VENTO



SEM DEIXAR RASTO



SEQUER UMA CINZA





ESTE MEU CÉU



É O MEU CHÃO





































sexta-feira, 26 de outubro de 2007

AVIÕES DE PAPEL










Neste país de pastores e rebanhos inventados



ousas para lá do olhar



com os teus olhos



projetar sombra na luz





Ousas ladrar



no equilibrio assimétrico



das estrelas





Talvez por isso cão



quando ergo o poema



e o lanço do mastro mais alto da vida



só as crianças



fazem do teu corpo



aviões de papel








domingo, 21 de outubro de 2007

OLHOS ABERTOS


imagens do mundo









O meu amor dardeja




no rosto das multidões




para que não se confundam




os olhos abertos






O meu amor a dardejar




quebra-se nas falésias




quebra as falésias




mas não se verga






O meu amor a brandir




em voos solidários




resiste




arde até ás cinzas




renasce das cinzas






O meu amor rasga sulcos brancos




no miolo da voz




por onde escorre a saliva




rasga-se em palavras de ordem




surpreende todas as cores






Tiro dos meus lábios




um beijo




para os teus




quarta-feira, 17 de outubro de 2007

LUZ










Coado o silencio



neste marulhar de azuis



e outros destinos



liquefaz-se em rumores



a perfeição irregular das falésias





rebentam neste chão de timbres



novas sementes



que submersas se transformam



em novas apoteoses



de coisas simples





É neste leito onde me dispo



que oiço claramente



indícios de palavras incendiadas




que o tempo não apaga





É neste ciclo de marés



que rasgo o oculto coração



das pedras



só para te ver



luz


domingo, 14 de outubro de 2007

VAGAROSOS INSTANTES










Todos os anos te espero



e tu vens



em voos rasos e doces



refrescar-te à mesma hora



quando rego as mais frágeis tangerineiras





No outono vou ter contigo



para saber onde me esperas



e tu lá estás



em voos rasos e doces





nos meus vagarosos instantes








sábado, 13 de outubro de 2007

ADRIANO CORREIA DE OLIVEIRA










ADRIANO CORREIA DE OLIVEIRA

uma referência nacional de Homem impoluto

interventor na sociedade - pela liberdade,pela paz e pelo pão.

Um poeta da vida

uma voz imperdível.



Nós não deixamos morrer os nossos mortos



porque o amor é revolucionário


quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Á BEIRA DO DESEJO

lamento mas esta foto não foi por mim tirada








Nas fissuras menos conhecidas das pedras



navegam sargaços de cristal



move-se um coração de ave



água possuída de viagens



que o sol lambe em alvoradas





Na mais dura pedra um barco



com gestos a dardejar



desperta animal no próprio corpo



margens

voz

arestas



como se houvesse princípio para a fala





Na mais dura pedra a explosão



secreta dos corais



um pequeno sinal de vida



incontido



à beira do desejo e amanhãs



nesta pátria de naufragos



adentro





Nas fissuras menos conhecidas das pedras



uma asa suspensa



voa na luz



despe-se de tudo





participa



na desordem dos espelhos


domingo, 7 de outubro de 2007

PÓ E PERFUMES










Estão compostas as pedras na pauta



flui nos dedos



agita-se neste piano de espumas



a floração dos sons





É manhã de cantar



levar o corpo ao vento



Somos nós



as arestas imperfeitas



o timbre da água quebrada no olhar



antes que arda





No ar que se respira



inclinam-se inocentes



pó e perfumes






quinta-feira, 4 de outubro de 2007

AZUL EM VEZ DE CÉU

ondapcparadise








Na água sem repouso

freme a sabedoria dos espelhos



Pode ser lume esta água

pode ser dor este canto



rumor de luzes reverberando

sonhos de amanhãs



pode ser



espaço azul



em vez de céu




segunda-feira, 1 de outubro de 2007

CLARIDADES

foto de Gamini Kumara








Canta a asa que voa

e desmaia

na fenda solúvel

das palavras



Canta e colhe

o perfume lúcido da alvorada

o fogo mais íntimo da pele



Canta

e enquanto canta

oiço no meu búzio

de mãos nos ouvidos



um crepitar de areias e faúlhas



Canta

e enquanto canta

respiramos outras claridades




domingo, 30 de setembro de 2007

O COWBOY DA MEIA NOITE


A NÃO PERDER ATÉ AO PRÓXIMO ASSALTO


sexta-feira, 28 de setembro de 2007

PÁTRIA DE SALIVAS

sea-moon






Regressei às águas deste mar

a este movimento de sussuros



a estas redes a este canto

a esta doce sinfonia



a este porto a esta casa desgrenhada

a esta pátria de salivas



Regressei com mãos cheias de sede

para carregar melhor este espelho

flamejante de barcos e tremulina



o corpo líquido por entre os dedos



a síntese da tua nudez








segunda-feira, 24 de setembro de 2007

A SENHORA DAS MEIAS PRETAS

imagem da net












Ao som do Gregorian Chant,no Monostery of Montserrat,estava eu


no c.d.,a ver na minha frente - cairem aves do céu - que mais me


pareciam estrelas.


Na verdade estão sempre a cair aves neste chão que as





fe - cunda


re - colhe


se - pulta





Na verdade neste chão de asas e mares desgrenhados





flutuamos





tão leves que nem a morte sente os nossos passos.





- Cão de barro?


- Perdão - as estrelas também se conquistam - mesmo as que caem do céu.Foi precisamente por isso que decidi apaixonar-me pelo seu cão de barro.


-Decidiu?


- Sabe - até para amar é preciso ser competente e tomar decisões.


É verdade decidi apaixonar-me pelo seu cão de barro e solicitar a sua


presença no meu gabinete de trabalho.Acredite que tenho necessidade


de partilhar o poder no meu último despacho.


Especulei com a memória e recordei uma história inventada


"Sim senhora ministra".





Uma vez mais a lua estava cheia e um vulto elegantíssimo percorria


a azinhaga desde o portão até à casa.


Obviamente o portão estava no trinco e o cão preso.


O Dique - observador de silêncios gregorianos - permitiu que o vulto


se aproximasse - mas não deixou de roer a corda.


No chão da azinhaga - um som cadenciado - uma espécie de toc-toc


toc-toc na direção da casa.


Agora sim mais nitidamente,o vulto parecia um espaço habitável,


uma mistura de sombras eróticas.


Exibia quase provocadora um caminhar de ancas sofisticado


e o clássico aroma do chanel nº.5.


- Senhor - não é um assalto.Tomei a liberdade de invadir pacificamente o seu espaço para lhe fazer um convite personalizado.


- Foi um risco senhora.Aqui quem morde é o dono.





No dia e religiosamente na hora - lá estava eu com o meu cão de barro,no seu faustoso gabinete de trabalho.





Decidida - varreu para o chão toda a papelada,arquivada à vista


na larga mesa de reuniões.


Colocou na aparelhagem um c.d. e o reóstato no lusco-fusco.


Pegou docemente no dique.Subiram para o tampo da mesa e aí


dançaram soltos,como estrelas,cabeças a tilintarem nos cristais


do lustre.





Exausta - largou o cão e convidou-me para um moscatel roxo.


Sentada no sofá,saias arregaçadas,colocou uma bela caneta


de tinta permanente,cravejada de brilhantes e aparo de ouro legal -

entre os dedos do pé direito e assinou devagar mas com determinação

o seu último despacho oficial.



-" A partir de hoje - sou a senhora das meias pretas."







quarta-feira, 19 de setembro de 2007

O CÃO É CEGO






Nesta vida que ladra,há um chão de latidos que por vezes nos roi

os ossos e morde o silêncio - se nos calarmos.


Nesta vida onde todos os muros parecem ter uma fenda e os amantes

bem podiam ser pais eternos e namorados.


Nesta vida onde se reproduzem "os filhos dos homens que nunca foram meninos" e mulheres que nunca foram estrelas - apetece-me

continuar a dizer bem alto - plantai árvores crianças.


De facto estávamos no tempo em que todas as histórias eram

mentiras,excepto as inventadas.

Olhos postos na minha araucária preferida - precisamente esta

aqui na minha frente e que ajudei a criar - fixei-me no Dique,

omeu cão de barro.

Na verdade o Dique,após ter sido considerado família,perdeu

a noção do barro,passou a ser cúmplice de memórias e amanhãs.

Nesta atmosfera e talvez a propósito das trovoadas secas que proliferam no tempo que faz,o Dique - completamente solto,confidenciou-me esta história que não resisto a contar,

na presença insuspeita da minha araucária.


O Dique - que nunca gostou de fardas nem de paradas,foi desde

sempre anti-militarista.

Contraditório - já o ouvi defender - guerra à guerra,num conflito

muito grave,quase passional,com a gata da vizinha.

Diferenciava a guerra das palavras,do cheiro a pólvora.


Cão é cão - pensei sem pestanejar.


De qualquer modo afirmava que o poder das armas,nunca foi porporcional à razão dos que as não têm.


Cão é cão - pensei de novo.


A araucária - formosa mas fustigada pelo tempo que faz

e pela história do Dique - não dizia nada,mas atenta aos relâmpagos

de quando em vez lá deixava cair um sinal de pétalas.


Foi num destes instantes que o meu cão revelou a possibilidade

de desalinhar das campanhas bélicas,por via pacífica.

Convocado - apresentou-se de atestado médico em riste,sempre

com a inabalável convicção que uma miopia avançada nunca poderia

resultar num bom artilheiro.

Enganou-se.Os cães ,mesmo os de barro,também se enganam.

Apurado para todo o serviço militar,lá foi a ganir para a instrução,

mas ainda com um brilho nos olhos.


Nos primeiros exercícios físicos,sentou-se a meio do trampolim,

ameaçou deitar todos abaixo no pórtico e no tiro ao alvo apenas acertou

nas tabuletas indicativas.


Exibiu-se como lhe convinha - um verdadeiro soldado de merda,

mas um cão com objetivos - pensei eu de novo.


Um dia e após tanta inaptidão demonstrada,foi convocado

para uma junta médica.

Alguém de bastão apontou uma letra no quadro,tamanho da parede

e perguntou-lhe com voz rouca.


-Que letra é esta?

-Desculpe meu sargento mas não vejo o quadro.


Após uma eternidade de análises políticas e discussões clínicas

o obviamente impoluto colégio militar concluiu por unanimidade


O cão é cego.





sábado, 15 de setembro de 2007

A NUDEZ DOS LÁBIOS

"Bocage e as ninfas"oleo de Fernando Santos








Também aqui o irrepetível espelho



se revela em florações liquefeitas



caminhando como nós por sobre as pedras



enquanto nos olhos da velha araucária



sabe-se lá porquê



uma ave de outras bandas



descarnou aquela que julgava ser



a última pétala da marginal





Também aqui as árvores teimam



projectar sombra



no tracejado solar das marés



enquanto um frémito cintilante



nos dá alento para surpreender



a nudez do primeiro orgasmo





precisamente onde a água se abandona





para os lábios






terça-feira, 11 de setembro de 2007

AVANTE BUBISTA

foto da net



Tenho a vaga ideia de ter sido há mais de cem anos,mas admito

que seja um exagero.

Éramos todos muito mais novos e o sol raiava.

Estávamos reunidos por nobres causas de cooperação no seu gabinete e sonhávamos alto de olhos abertos,renovávamos marés,remávamos ventos de areia,contra a corrente.

Sonhávamos o lento caminhar das dunas e as dunas moviam-se.


Recordo que o encontro foi longo e fraterno,tendo o anfitrião

a dado momento interrompido o diálogo para gentilmente pegar

no cinzeiro,atafulhado de beatas,abrir a janela do gabinete e libertar-nos

das cinzas.

Ficámos mais aliviados - até hoje.


Encontrei de novo o senhor chefe de gabinete do ministro -

hoje ministro.Estávamos como há mais de cem anos no mesmo

restaurante.Mesas quase geminadas,mas de costas um para o outro.


A ilha permanece um ponto no colossal mapa do Atlântico.

Pobre mas bela e selvagem - uma deusa para amar a tempo inteiro.

A ilha bordejava de brancas areias delicadas onde ainda corajosas

nidificam tartarugas,supostamente protegidas.

Idílico espaço árido que alguns habitam,na sonolência cálida

e transparente das águas com vista para pequenos rebanhos

de cabras à solta.

O turismo vai adocicando a vida dura,mas não disfarça

as dificuldades impostas.

A ilha permanece ainda uma dádiva da natureza,mas cada vez mais

para invasores por via pacífica,enquanto o povo,na sua terra,

continua a ser uma maternidade para a emigração.


Mais de cem anos volvidos - não fui reconhecido pelo ex-chefe

de gabinete do senhor ministro,talvez por estar previsto para mais tarde

um encontro.

De qualquer modo ele estava ali - mas de costas e distraído e eu só tinha uma possibilidade - olhar de soslaio e fixar-me numa bela duna

aloirada que espreitava,não muito longe,o nosso silêncio.

Foi o que fiz.Fixei-me na duna.


Entretanto e para dilatar o tempo,pedi ao empregado uma sobremesa.

Disse-me que só tinha bolo.

Perguntei - bolo de quê?

Só bolo.


Concordei no preciso momento que o senhor ministro revelava

em surdina um despacho relativo à minha presença na ilha.


"Considero não ver inconvenientes na cooperação,mas as minhas

expectativas estão muito por baixo"


Recordei-me da sua gentileza quando era chefe de gabinete e do

mesmo modo como compreendi o empregado de mesa,não compreendi o ministro.


Passado que foi o período do repasto - faltei ao encontro.

Dirigi-me à duna - e lá do alto dei um grito em crioulo.

AVANTE BUBISTA

Atirei um grão de areia ao poder.Condecorei a senhora da limpeza

com a medalha destinada ao ministro e deste modo


obviamente que o demiti.





segunda-feira, 10 de setembro de 2007

ESTRELA DO MAR

foto da net








Admito que estejas sentada

nas areias da praia

à espera da onda

onde me espumo



para te colher



Se lá não estiveres

no teu lugar estará um sinal



e nada mais será importante



estrela do mar


quinta-feira, 6 de setembro de 2007

LUCIANO PAVAROTTI






















No silêncio





ecoa





mar adentro





arde em chamas





nas falésias





o branco do linho












terça-feira, 4 de setembro de 2007

O FIO DA MEADA ( 3 )

Embarquei num aeroporto sem radares
e cheguei numa avioneta com ventoinhas.

O dia estava pardo na Terceira

No taxi perguntei ao motorista,perante uma senhora
de Fátima que balouçava ,pálida e por um fio
no retrovisor:

Foi na "Casa das Tias" - aqui nesta ilha - que nasceu
Vitorino Nemésio?
Sou de cá mas estive vinte anos na américa.Não lhe sei responder
- isso é mais para políticos e doutores.

Assim esclarecido fui ver a velha casa,que serviu em tempos
para armazem de refrigerantes e hoje é museu municipal.

Na terra de Vitorino Nemésio
e do porta aviões americano das Lages
alguem entendeu por bem que a vida
não é apenas o minuto que se segue.

Acabei por reconhecer
que ainda por algum tempo
fará "mau tempo no canal"

domingo, 2 de setembro de 2007

FESTA DO AVANTE








No Seixal

o P.C.P. entendeu por bem partilhar

o seu belo espaço debruçado sobre o Tejo

com todas as pessoas



Um momento sem complexos

de lapelas partidárias



No respeito pela diferença

admito que também em festa popular

é possivel

na multiplicidade das ofertas culturais



construir amanhãs







quinta-feira, 30 de agosto de 2007

NESTE CHÃO

ceifeira/tribosdegaia







Cheias de terra e sol

as tuas mãos

sobre o ventre em festa

de searas

têm o perfume das papoilas



Quando faz vento

um mar de cabelos desgrenhados

voa campo fora

fulvo na transparência dos teus gestos



cresce o pão

nas nossas bocas



e os teus olhos dulcíssimos

mostram

como se move a sombra das azinheiras



todo o corpo

todo o corpo



Cada fruto semeado

pare uma multidão

e nós cantamos

aqui

em todos os póros da palavra



neste chão






segunda-feira, 27 de agosto de 2007

UMA PEDRA NO CHARCO

desenho de Mário Filipe




A Graciosa não era açoreana.Começou por ser um pinto ternamente oferecido por uma amiga.Talvez por isso desde os primeiros pius tivesse

sido criada como família.

Solenemente batizada com um mergulho na água do poço,cresceu e fez-se gente.Era uma galinha imponente.

Gostávamos tanto da Graciosa,da sua plumagem - sobretudo do seu

comportamento irreverente mas doce,do modo como pestanejava

os olhos amendoados e sacudia as asas.Era de facto a princesa do galinheiro.Ligeiramente anafada,solteirona,farto peito,pernas

consistentes,rabo de mulata cubana,simpática,trunfa esbelta e andar

sedutor.


Apesar de modelo ímpar - a Graciosa não punha ovos e todos

atribuiamos o facto não à Graciosa mas ao galo.

Na verdade o galo não cumpria um pormenor fundamental -

faltava-lhe quando cantava - as duas últimas notas musicais para

o concerto estar conforme a pauta.


Resultado - um dia decidimos substituir o galo por um tenor

e a vida pareceu dar-nos razão.


A Graciosa - princesa indigitada,começou a pôr ovos,como todas as outras - mas com duas gemas - isto é,mantinha a diferença.

Não cacarejava,falava com os olhos amendoados,fazia garatujas

com o bico nas paredes do galinheiro.Com a simplicidade e a sabedoria

dos iluminados começou a isolar-se - de tal modo que um dia foi galada

pelo tenor.Perturbada mudou de personalidade.Inesperadamente.

Admitimos que tão profunda mudança tenha a ver com o facto de ser virgem fora do tempo.

Certo é que se considerou violada e passou a ser arrogante,dissidente

e politicamente liberal.

Sentimo-nos traídos.

A princesa estava pedante e tresmalhada.Se fosse gente fumaria

"cohibas" não humedecidos,frequentaria nos casinos as salas de jogo,

tornar-se-ia meretriz e regaria a clientela com espumante barato.


Já não era uma metáfora era uma hipérbole.


Refletindo - concluimos que a Graciosa,de tão protegidadesde pinto

se tornou num Acácio com penas,num conde de Abranhos,num tartufo,

uma marioneta da cirurgia plástica.


Perante os factos decidimos - vamos comer a Graciosa.


Após alguns dias de preparos,convites e paramentos - o momento

politicamente organizado e religiosamente celebrado - estava na mesa

e na púcara.

Preparados para atacar o evento gastronómico eis que um pássaro

que nos pareceu ser exótico mas era tão só um residente pardal -

cagou no centro da mesa,precisamente na terrina da canja.


O Mário começou a desenhar a cena e a Maria João,antes das primeiras garfadas disse


Pai - parece que vamos comer a família.



Olhámo-nos nos olhos uns dos outros

e largámos os talheres.





sábado, 25 de agosto de 2007

EDUARDO PRADO COELHO








NÓS NÃO DEIXAMOS MORRER OS NOSSOS MORTOS



MESMO QUANDO EM VIDA NEM SEMPRE AO NOSSO LADO



VERGO-ME PERANTE A MEMÓRIA




terça-feira, 21 de agosto de 2007

O COMENDADOR ISIDORO

desenho de Mário Filipe








Mão amiga inscreveu na lista dos novos comendadores,para despacho

do senhor presidente - um "pato bravo" de seu nome Isidoro.

Admite-se em Cajados que a comenda lhe tenha sido atribuída apenas

pelo facto de ser um homem podre de rico e mecenas não se sabe de quê



Consta que chegava a um restaurante e quando lhe perguntavam



Vossa excelência deseja uma casta da Região Demarcada do Douro?

Sugiro um Touriga Nacional - casta nobre,rica em polifenois

e compostos aromáticos.Vossa excelência dirá.

O Isidoro,que agora se chama comendador,levantava as fartas

sobrancelhas,fingia pensar e respondia - sempre do mesmo modo

Traga do mais caro.



Tudo isto a propósito do "monte dos tesos" que o comendador

recuperou na aldeia de Cajados.Uma mansão para festejos hilariantes

aos fins de semana.



Um dia com os convivas já a destilarem,as senhoras a chapinharem

na piscina a tricotarem intrigas - o comendador chefiou um grupo,

azinhaga fora para substituir a placa indicativa da aldeia que deixaria

de se chamar Cajados para se chamar Monte dos Tesos.

Alertado e vigilante o povo arrancou a placa repôs a verdade.

Houve mesmo um destemido que se atreveu a gritar

Abaixo o comendador



Durante a semana a paz instalava-se em Cajados,onde habitava

o senhor Jacinto,homem estimado,trabalhador rural assalariado,

viuvo e com três filhos a cargo.

O pai saía ao nascer do sol,regressava ao pôr do sol e os putos

ficavam à solta.



Então não comem nada?

perguntava o senhor Jacinto

Não nos apetece.

respondiam em coro -o Tó,a Bia e o Perdigão.



A verdade dos factos



Os putos descobriram um postigo na casa dos jogos do comendador

e durante a semana invadiam ciclicamente a mansão para tirarem

a barriga de misérias.Abancavam à farta - do bom e do melhor.Só não

tocavam nas lagostas porque tinham medo dos bichos.

Os mais novos sentados à mesa,com toalha de bilros e castiçais,

eram servidos pelo Perdigão que ía dizimando o frigorífico por turnos.

Após o repasto dormiam a sesta refastelados na larga e fofa cama

rocócó do senhor comendador.Após a sesta,todos nus,tomavam banho

na generosa piscina e no regresso a casa ainda se atafulhavam

com "palitos la reine".



Um dia o comendador apareceu de surpresa,com um bando

de seguranças.Apanharam os putos.Lindos como anjos no olimpo,

a dormirem profundamente.Ressonavam como príncipes.O Perdigão

até assobiava uma espécie de tirolês.



Resultado

Queixa na GNR,os putos entregues ao pai que entretanto regressava

estoirado do trabalho.Tribunal - decisão do juiz

Tem dez dias para indemnizar o senhor comendador pelos prejuizos

- 500 euros.



Volvido o prazo,o senhor Jacinto não pode pagar e está em parte incerta.Os putos foram internados numa casa pia qualquer.



O povo está triste e a quotizar-se para pagar a dívida.



O senhor comendador continua em festa.







domingo, 19 de agosto de 2007

O FIO DA MEADA (2)

Caí do céu nos Açores,mais precisamente na ilha Graciosa

Calcorreei a lava petrificada,a geometria dos verdes bordejados
por firmes muretes de cascalho sobreposto

Observei o preto e branco tresmalhados na pele dos animais.

Ouvi o doce,lânguido e apelativo mugido das vacas em liberdade.

Desmaiei os pobres olhos no sucalco das espumas bravias,
insuflei os pulmões nos ares frescos e espectaculares dos moinhos
de vento e subi ao poema.

Quando vi tanta exuberancia,tantos silêncios silvestres e me fixei
num solitário burro cabisbaixo

admito ter ficado mais triste do que ele


segunda-feira, 13 de agosto de 2007

O FIO DA MEADA ( 1 )

Nove horas de voo.Cinco horas de diferença horária,mais duas horas
de táxi de Havana para Varadero.
A estrada latina,o táxi latia e eu bufava.Foi assim até Matanzas.

Zita - a motorista do táxi,perita em ultrapassagens pela direita,
ia atropelando um site-car superlotado.
Interrompida a viagem,seguiram-se impropérios gesticulados
que deslisaram para um diálogo fraterno,quando a motorista se identificou.

Apesar de tudo cheguei bem ao Arenas Blancas.

Reconhecido ofereci à senhora uma tee-shirt do Seixal Jaze.
A motorista,comovida não susteve uma finíssima lágrima de rum
e despediu-se com um solene "hasta siempre comandante".

sexta-feira, 10 de agosto de 2007

ÁGUA DE MIM

La muralla/laluzdelasflores






Cantas e feres água de mim

nos meus claustros de vinhedos



As tuas asas de papoila silvestre

procuram alimento nesta graça

longe das multidões



procuram o ofício da luz

a candeia para lá de todos os silêncios

o meu regato preferido

para continuar a respirar-te por guelras



Por aqui água de mim passas devagar

corres tranquila

só para distribuires pela boca das sementes

um rasto de vida

sorvida no chão que pisamos



Ajudas-me a cantar e a ferir este silêncio

que me faz falta

para ti



segunda-feira, 6 de agosto de 2007

O MAGNIFICO GALINHEIRO

desenho de Mário Filipe



Estava o magnifico galinheiro reunido nos poleiros tradicionais -

dramaticamente com poderes absolutos - flamejante e tartufo na discussão de mais um esquelético e estrábico orçamento restritivo

para a comunidade carenciada,quando aflorámos uma ideia antiga

e muito familiar do nosso quotidiano comum.


Como colocar um pauzinho nesta engrenagem?


Na verdade - apesar de tanto cacarejar aveludado,tinhamos quase afónico - um galo espartano - a chefiar uma tribo de 12 poedeiras

sequestradas.

Não foi por ser afónico,mas pelos seus tiques espartanos que sentimos

a necessidade de um tenor menos austero,para dar outra cor à vida

em comunidade.

Na verdade - uma coisa é ser chefe,outra é ser lider.Uma coisa é ser

empresário,outra é ser patrão,trabalhador ou empregado.

Entretanto o tempo passava inexorável e ninguém sugeria um Pavaroti

credível,democrático,sensível aos que mais penam - um tenor que desse a volta ao orçamento restritivo.


Viajámos um dia para o monte Barranco do Bebedouro e foi ali,

na delícia de uns pèzinhos de coentrada,que aconteceu uma conversa

interessante àcerca da arte de colocar pauzinhos nas engrenagens.

O amigo Anastácio que há muitos anos faz milagres de artesão com

o seu canivete de lâmina finíssima,levantou-se e disse com voz embargada

- Para o caso vertente,vou oferecer-vos um casal de pombos alentejanos da minha confiança.

Numa caixa de papelão,com respiradouros ternamente executados,

o amigo Anastácio ofereceu-nos a solução e todos ftcámos mudos e agradecidos.Assim - sem mais palavras.

Um casal de pombos.O Campaniço e a Soalheira.

A fêmea,plumagem cor da hulha.O macho,branco como a cal.

Lindos.Ela - olhos verdes alface,muito vivos,pernas esguias mas torneadas,rabo espetado,pescoço esbelto,ex-modelo em concursos

columbófilos.Ele - porte atlético,campeão de maratonas,de poucas

falas,tipo engenheiro nos excedentários da função pública.


Os novos residentes,oriundos de uma família numerosa,humilde e trabalhadora,foram instalados no magnífico galinheiro,pela calada

da noite,por uma questão de bom senso.

Tinham que adaptar-se e reagir à crise nacional do tempo que faz-

considerar o período da caça com os homens à solta - ao galo espartano

e até às poedeiras iludidas de quando em vez a chocarem ovos supostamente galados.


Ao raiar da aurora,verificámos que à mínima distração o galo malhava nos pombos que se levantavam do chão e cantavam,cantavam,

- cantavam hinos populares,criatividades amorosas.


O galo afónico e arrogante no preciso momento em que os pombos estavam a arrulhar - inesperadamente - libertou pela primeira vez na sua vida - um dó sustenido quase perfeito,e eu gritei

- Finalmente o galo cantou.


Retificámos imediatamente o orçamento restritivo.

Soltámos os pombos e as poedeiras.


O galo ficou a cantar sózinho.




sexta-feira, 27 de julho de 2007

A BOLA DE BERLIM

desenho de Mário Filipe Tu sabes Dique - na vida, por vezes, um homem tem que ladrar

aos cães.

Compeensivo - o Dique olhou-me, e lá fomos.



Estava um senhor representante de um país rico a discursar no púlpito de uma cimeira com pobrezinhos na plateia - de modo a chegarem a um acordo original - "quem manda aqui sou eu" - e tudo continuar como antes - isto é, os pobres cada vez mais dependentes e estupidamente felizes na bandeja dos "subsidios".

Fui com o Dique assistir ao discurso, no segundo balcão do auditorio e concluimos - ainda o senhor estava na leitura do primeiro rolo de papel - A VIDA NÃO É SÓ CONTEMPLAÇÃO E VALE A PENA INTERVIR NA PAISAGEM.

Foi o que fizemos.

O Dique ladrou em falsete, eu cantei a Grandola Vila Morena e ouvimos ao lado alguem bater palmas ao nosso protesto - até sermos expulsos da galeria, após identificação.

Saímos incomodados. A rua vigiada sugeriu-nos uma pausa no café da esquina.

Olhei o Dique ainda não refeito da expulsão. Estava triste.

Disse-lhe determinado - será melhor falarmos de nós. Acalmado concordou e eu comecei a vaguear pela memoria.

Um cão pode ter caracteristicas sublimes de personalidade.Depende do cão e do dono, das condições que ambos conquistaram na vida e da parceria que acordaram nos olhos um do outro.

Não estou de acordo com o Snoopy quando diz - "ontem era um cão.Hoje sou um cão. Amanha provavelmente serei um cão. Há tão pouca esperança de progredir". Curiosamente o Dique também não está de acordo com o Snoopy.

Quem és tu Dique?

Não é simples de explicar,mas em síntese, és um cão.

Aos meus olhos és ainda mais que um cão.Porquê? Porque tens sentidos. Porquê? Porque és vertebrado e quase humano nos caminhos que percorremos, nas histórias que inventamos, na cumplicidade que partilhamos.

Na verdade tudo tem um principio mesmo que a explicação seja simples. Na verdade criei um objecto animado para protagonizar comigo - silêncios, memórias e afetos.

Tornei-me ventríloquo?

Uma coisa é certa - tu existes e chamas-te Dique.

Um dia, no lugar da Volta da Pedra, na berma da estrada nacional, parei numa venda de barros. Tinha a ideia de comprar um vaso e acabei por comprar um cão. Exactamente - um cão de barro .

Sempre pensei que nesse preciso instante estava apenas a comprar um objecto decorativo. Nunca pensei que um dia aquela coisa poderias ser tu Dique. Parece que foi ontem.

Sentado sobre as patas traseiras, porte altivo, orelhas espetadas, olhar terno, bem esticado de coluna, cheio de pó e corpo de barro. Olhamo-nos e parece que te ouvi dizer baixinho - "tira-me daqui".

Resultado - não comprei um vaso, comprei um cão.

Comprei-te barato e coloquei-te onde me pareceu mais certo - à porta da casa.

Ali ficaste todo o inverno.Ao sol, à chuva, ao frio.

Um sentinela.Hirto, sem pestanejar.Uma estátua vigilante e leal a cumprir uma tarefa, um desígnio histórico.

Recordas-te? Passava por ti e não me apercebia que eras um cão. Só tu sabias.

A vida tem razões que a razão não entende e talvez por isso valha a pena ser sonhada, recriada, partilhada.

O inverno passou, nu e cru como são os invernos.Não arredaste pé até que no despontar deste verão - desapercebido ou enamorado da lua cheia, ao fechar a porta da casa, assustei-me com o teu vulto. Nem parecia noite e tu projetavas sombra com a dignidade do primeito dia.

Nervoso - sorri-me com um esgar repentino. Assustei-me.

A partir daquele momento inesperado comecei a olhar-te como um animal de carne e osso.Deixaste de ser um objecto coisificado. Passaste a ser considerado um parceiro com quem podia contar para os bons e maus instantes.

Reconhecido foste batizado solenemente e hoje chamas-te Dique.

Pintei-te todo de preto. Coloquei-te dois brilhantes nos olhos e um dia

a nossa avó num rasgo de criatividade, chegou a dizer - "o Dique é a melhor pessoa que habita esta casa".Porquê? Porque um cão depende de si e do seu dono, e por vezes o contrário não é menos verdadeiro.



Por tudo isto entendemos hoje ir ao auditório.

Sonolento o Dique ouviu uma vez mais a nossa história.Terminámos a bola de Berlim.Saimos do café da esquina.

Admitimos que a cimeira tivesse encerrado, pois o tal senhor do discurso que reconhecemos na via pública, gritava - " DER SIEG,DER SIEG".



A rua ainda estava vigiada.Ainda rosnámos.

Peguei no Dique e regressámos a casa.

sexta-feira, 20 de julho de 2007

MADRE INÊS


desenho de Mário Filipe
Hoje acordei ainda os barcos estavam de ramelas e lavagem de porões -numa ilha quase imaginária.
Com os restos sonâmbulos de um sonho acordado,surpreendi-me
com um pensamento -
Hoje não quero salvar o mundo,só ajudar.
Na verdade é necessário coragem para renovar,sem perder o traço
fundamental do legado histórico e afetivo.As memórias de hoje foram
inovações no passado e a vida em sociedade é também este ritmo natural
e incontornável de estarmos no nosso tempo - por vezes contra o nosso
tempo - sem fossilizar nem castrar os sonhos.
Hoje acordei assim - a sorver o ar fresco da manhã.Acordei lentamente por entre neblinas atlânticas,a partilhar o voo assimétrico
mas equilibrado de um açor,quando inesperadamente fui invadido por
um silvo estridente,quase um choro de criança - uma farpa nos tímpanos.Era o meu telemóvel de primeira geração.
Atendi - não fosse uma ordem para evacuação do hotel - um eminente despertar vulcânico,uma revolta da direita autonómica,o reinício
da caça às baleias.
Atendi e reconheci de imediato - a minha gata.
Tenho algures uma amiga que nunca vi e me telefona ciclicamente.
Sensual,com dicção perfeita,lê-me sempre o mesmo poema -
Se tivéssemos um barco/ai se tivéssemos um barco/tinhamos o mundo/e seria inútil.
Esta minha amiga não dizia mais nada mas terminava sempre
com um inigmático - miau.
A vida não é fácil,mas com paciência,generosidade e algum prazer pessoal,tenho contribuido para esta ladaínha.
Uma vez mais o silvo do telemóvel.O cumprimento do mesmo ritual.
De facto - a voz terna e meiga da gata,clarinha como a água,
aparentava um animal de fino porte,pêlo fofo,olhos de esmeralda,
pernas cheias,busto virtuoso,anti-fascista e sensível às noites de jaze.
Deste modo vivi este monólogo erótico que me transportou - não sei
porquê - para uma cena metafísica.
Num vagaroso instante,abandonei a ideia do telefonema ser da minha amiga e fui assolado por uma outra possibilidade ,talvez mais hilariante.
Teria a galega - madre Inês - perscrutado a espuma dos tempos,
quando desviou a imagem do "senhor santo cristo" de um lugar ermo
da ilha para Ponta Delgada,assim menos exposta aos apetites liberais dos piratas da época?
Uma coisa é certa - a escultura do "santo" é uma rica peça de arte,
um prodígio encrostado de preciosidades e sacrifícios humanos.
Transfigurada por vontades pagãs,prespassou para um destino sublimado de fé e turismo religioso - e eu,vulgo mortal,de telemóvel
no ouvido,coçando a barba,fixei-me uma vez mais no voo assimétrico
mas equilibrado do açor - que me confidenciou -
Agnóstico,também eu me sinto profanado.

Entretanto os barcos permaneciam ancorados.
O s pássaros,as aves marinhas,eu mesmo -"levantados do chão"
já ousávamos viajar mar adentro.

Mais tarde - um pouco mais tarde - um novo silvo - a terminar
como sempre
MIAU

Entendi responder pela primeira vez.
ÃO - ÃO

E assim ficámos - esclarecidos - para toda a vida.




sexta-feira, 13 de julho de 2007

O VOO DO MOSCARDO

desenho de Mário Filipe




Após o repasto,dispersaram os convidados e alguém se lembrou de

Rimskikorsakov.

A noite - quente -esplendorosa e sempre poética caía em nuances

polícromas - as cigarras ensaiavam cânticos sedosos que afloravam

a folhagem.O silêncio melódico estava reposto e a lua cheia tão linda,

desenhava no chão os recortes da casa,iluminava os nossos corpos.

Cantava.

Estávamos no campo,no mar arável das videiras.

Apesar do êxtase a família residente ainda se propôs ouvir o espargir

da água na rega automática.

Entretanto a paz onírica foi interrompida abruptamente e a família

unida - declarou caça a uma mosca varejeira que distraída das regras

democráticas entendeu devassar a cozinha.

A mosca,de facto,era um espectáculo - uma verdadeira besta de insecto.Enorme de asas,gorda,cor do petróleo,patas felpudas,celulite irreversível.Uma suculenta matrona.

Alguém afirmou ter-lhe visto uma cremalheira panorâmica de alvos

dentes aguçados.Na verdade não tinha lábios - exibia com mau gosto erótico uma beiça,tipo ventosa e cheirava a orçamento do estado.

Resultado - mobilização geral.

Em zig-zagues acrobáticos sobre as nossas cabeças,bufava,zunia,

zumbia zumzuns,riscava o espaço com uma baba fluorescente.Quase

política de direita,esfregava tímida as patas dianteiras e discursava arrogante sem aplausos nem substância,ao seu jeito - fluente palha

e em falsete.

Onde poisava deixava marcas,ameaças,impropérios,prepotências

e algumas rezas.Mostrava de quando em vez os olhos fulvos em desafio à lua cheia.A espaços tremulava as asas que pareciam bracinhos,como se fosse uma libelinha.Queria não parecer uma mosca varejeira.

Conclusão - na ausência de uma política coordenada e eficaz para a segurança dos cidadãos - voluntários - movemos-lhe caça cerrada,

meticulosa,com estratégia e tácticas cientificamente aceites na comunidade europeia.Utilizámos códigos em surdina,transmissões

gestuais - armas em riste.

Para a família a questão era tribal e honorária.Fervia-nos o sangue

nas coronárias e houve mesmo alguém que gritou - abaixo a mosca,

viva a liberdade.

Enfim - até o doce de tomate ,caseiro,que demorou à nossa avó seis

horas a cozinhar em lume brando,colher de pau em tacho de barro -

tomates sem pele nem graínhas,ao som da música - até o doce de tomate,cozinhado como quem vai a Fátima a pé lhe oferecemos de bandeja.

Demos-lhe poesia de Florbela Espanca,fizemos-lhe a mesa,demos-lhe

cama e roupa lavada.Estudámos em concílio improvisado o comportamento social dos insectos - chegámos mesmo a ler algumas

crónicas do Eduardo Prado Coelho - tentámos em pausas consensuais

alguns contactos políticos.

As incontronáveis férias são assim.As lojas do cidadão ficam desertas

ficam abertas apenas as maçónicas.O país encerra para transpirar e

até os políticos são considerados filhos de deus.

Entretanto a perversa mosca voejava na cozinha,mobilizava a família.Por vezes aparentemente brincalhona - saltitava nos ponteiros do relógio - escondia-se no buraco da fechadura da porta,nos buracos do queijo flamengo,nos póros da nossa imaginação.Formigava no pingo de suor que escorria lento,curto e grosso pela orelha da avó e em raides

fulminantes,tresmalhava,espreitava e sumia-se como o ar em movimento.

Na sala ao lado - a rádio anunciava mais um ataque à função pública

e a verejeira,espartana mas exausta,finalmente poisava e sorvia no doce de tomate - o seu último desejo.Uma rendição.

A família em bloco,felicíssima - caíu-lhe em cima.Foi mesmo comovente ver toda a tribo unida em torno de uma questão concreta.

Reunidos entendemos não matar a varejeira como se mata uma qualquer mosca.Partimos todos em procissão e fomos depositá-la,

com o doce de tomate irrepetível,junto de um magnifico cipreste.



Regressámos - em silêncio.A lua ainda estava cheia.O Voo do Moscardo - oferecia-nos os últimos acordes.