terça-feira, 10 de abril de 2007

SEIXAL-Que dia é hoje?




Hoje acordei a fazer versos ou quase nada.Foi assim que decidi escancarar as janelas de todas as varandas - só para te olhar.
Lá estavas - na tremulina da preia-mar,sussurrante,nua,à minha espera.
Eu disse nua mas na verdade estavas quase nua - porque no corpo da
água ainda vi como num espelho,o casario a piscar os olhos nas margens
e senti uma brisa fresca a rumorejar no velame não recolhido dos botes,dos varinos e das fragatas.
Neste dia e a esta hora,em todas as varandas inocentes eu habitava o teu corpo lindo,casava gerações de culturas,credos e tradições - sonhava acordes na respiração das marés e ouvia perfeitamente nos mouchões o
piar afrodisíaco das aves em apelos de glória à nidificação.
Hoje acordei a fazer versos ou quase nada - escancarei as janelas de
todas as varandas e lá estavas tu,quase nua,ululante no mais íntimo de todas as coisas sofridas e amadas - à minha espera.
Os meus pobres olhos nos teus,os teus dedos por entre os meus.Os
lábios marcados na pele quando te penso.
Neste dia e a esta hora ecoavam em surdina o vociferar dos corvos,
o borbulhar lânguido das ostras,o timbre das filarmónicas e as cirenes
trepidantes das fábricas.
Era o teu corpo fertilíssimo e disponível a pulsar - do ventre até à foz-
um porto de abrigo para naufragos de todas as paragens,um espaço de
resistência para autóctones,como se a vida fosse um grão de areia rodeado de sonhos por todos os lados,como se a vida não fosse um grão de areia rodeado de sonhos por todos os lados.
Seja como for - de todas as varandas estreitas,de olhos rasgados,enga-
lanadas de ferro forjado,debruçadas montras de vestuário e sardinheiras
perfumadas de povo,palco de tagarelas,silêncios e cumplicidades,
partilhei o brado dos pescadores no coaxar dos passos enlameados do
"cerco"as lutas operárias,o silvo do do velho comboio,o cantar dos sinos.
De todas as varandas partilhei a marcha das canas,o cantarolar dos chafarizes,o ranger das engrenagens dos moinhos de maré,os arreiais,os bailes populares,a imponência dos coretos,as cavalhadas,o cais da Mundet,o trotear das bestas a puxar carroças ou a perseguirem democratas.
Escancarei as janelas de todas as varandas e lá estavas tu,um pulmão que respira,um chão de barcos,um ninho de azinhagas,páteos e ruelas tortuosas,toalhas de renda a colherem o perfume das algas,a ternura
genuina dos amantes que Raul Brandão aflorou,Manuel Rebelo exaltou
e Eduardo Palaio retrata nas aguarelas.
Reconheço-te meu amor nos contrastes ingénuos e talvez por isso até
goste dos teus defeitos.
Contigo tanto caminho por sobre as águas como no pó de tantos caminhos bordejados de amoras silvestres.Contigo tanto viajo por entre pomares e vinhedos como nas lendas de Paulo da Gama.Contigo minha terra de carne e osso se fazem os poemas e até as pedras têm nome.Con-
tigo apetece cantar,respirar por guelras.
Hoje acordei a fazer versos ou quase nada e foi assim com tantos sonhos acordados que registei dois momentos :
O primeiro

Recordas-te que viajámos numa pequena jangada,mal ageitada mas
ternamente construída com restos de troncos dos estaleiros navais?
Era preia-mar e nós remámos,remámos.Nesse dia fiz amor contigo
na varanda da minha tia-avó que se projetava nas águas da baía.
Ainda hoje transportamos esta incerteza - será que ela nos viu?

O segundo

Bojuda nas ancas,bamboleavas-te na bicicleta,pela azinhaga fora
até à casa da lenha,onde te recolhi.Apaixonados sentámo-nos nas pequenas cadeiras alentejanas e ardemos à lareira - toda a noite,até às
cinzas - ao sabor do jaze.

Pensando de outro modo acho que tudo isto vem a propósito do instante que de quando em vez nos desperta - isto é, uma vontade irresistível de parar para ver como se anda ou se quisermos a prática de uma ideia comum - fechar os olhos para ver melhor,escancarar as janelas de todas as varandas e gritar
SEIXAL -que dia é hoje?

2 comentários:

Alexandre disse...

«Escancarei as janelas de todas as varandas e lá estavas tu,um pulmão que respira,um chão de barcos,um ninho de azinhagas,páteos e ruelas tortuosas...»

Por vezes também escancaro as janelas e parece-me que recuei no tempo não mais de 20 ou 30 anos e tudo é diferente por aqui: os barcos, as ruas, as quintas, os moinhos, as árvores, os caminhos... as próprias marés já não são como eram...

Maria disse...

Poema em prosa lindo... ou prosa poética, como se quiser...

Primeiro - jamais saberás se a tua tia-avó vos viu...
eu, tia-avó recente, jamais revelaria tal segredo, daqui a vinte anos...

Segundo - para o bem e para o mal, já nada é como era dantes... nem as marés..