terça-feira, 29 de julho de 2008

O ELEVADOR




- Por aqui?


- Sim senhora ministra.


- Não brinque. Sabe que fui remodelada.


O hotel não tinha muitas estrelas, mas permitia alojamentos para cães e estava como eu gosto, debruçado sobre o oceano,


encavalitado numa rocha colossal. Um verdadeiro atentado.


- Aqui não tenho problemas por uns dias.


- Eu já conhecia este espaço. Como preciso do mar desgrenhado, de preferência com temporal e muitos relâmpagos, por cá estive um inverno.


- Interessante, eu gosto deste sítio quando o mar parece sopa.


- O Dique o que mais aprecia neste hotel é o elevador.


- Curioso, a Lassie também.


O hotel – talvez por se localizar num espaço ermo e caro, obedecia a todas as regras de segurança. Na verdade até o magnífico elevador tinha um vigilante em cada apeadeiro.


No r/c situavam-se os alojamentos para os animais. Os andares estavam reservados para os donos. Encrostadas na rocha espelhavam as piscinas de água salgada que o Dique nunca utilizou por ser um Serra da Estrela.


- Admito que a senhora ministra adore animais.


- Por favor, trate-me por tu.


- Com certeza.


- Após a minha remodelação, vivo com a Lassie. É a minha confidente.


De facto a cadela, um belo exemplar, exibia dois explícitos olhos meigos, pêlo farto aloirado, uma madeixa branca no focinho, ancas bem desenhadas, tetinas hirtas, cauda proeminente enrolada. Uma senhora.


O Dique não dizia nada, mas só um cego não via o carinho com que a coçava nas orelhas e lhe lambia os olhos.


- Dique – deixa a Lassie.


- Por favor não reprima os animais.


Estávamos no bar da piscina. O calor apertava e o mar parecia sopa. Chamei o empregado.


- Para mim um Kutty Sark, para o Dique uma água das pedras.


- Para mim um rosé gelado, para a Lassie uma Coca-Cola.


O hotel – por estranho que pareça, facultava na mudança de turno dos vigilantes, uma oportunidade para os cães subirem e descerem no elevador. O Dique desde a primeira vez, adorava estas viagens e foi a pensar nele que sugeri para o turno da meia-noite uma viagem com o Dique e a Lassie.


- Por mim tudo bem.


Assim aconteceu. A senhora, no último andar, carregava no botão e o elevador subia. Eu no r/c carregava no botão e o elevador descia.


Esgotado o tempo e a paciência, regressámos aos aposentos. Os cães – cada um para os seus. Eu – convidado, fiquei no último andar.


Uma suite espectacular, ampla, arejada, bem decorada, com tudo o que não fazia falta, excepto o espelho que forrava o teto, mesmo por cima da cama. Coisa linda.


- Considere que apesar de tudo ainda sou uma figura pública.


- Conhece o "jardineiro do convento", De Giovanni Boccaccio?


- Sim – era um surdo-mudo, mas não de nascença.


Ali ficámos a ouvir a ondulação do mar, até adormecermos no espelho.


No dia seguinte, regressado à preia-mar, ainda a madrugar na lua-cheia, trazia um sinal de outras marés, de outros ventos, quando alarmada mas feliz, a correr para mim, a senhora ministra.


- Tenho uma grande novidade.


- O governo demitiu-se?


- Não, a Lassie está grávida.


- Não me diga.


- Eu conheço a minha cadela.


- Foi no elevador.

domingo, 27 de julho de 2008

PEDRAS SIBILINAS

Em que pedras vertebradas
guardam os meus olhos
os sítios da água?
Em que pedras côncovas
vivem os peixes livres
o teu corpo sem ameias?
Em que pedras rasgadas
a aresta fina em viagem
se inscreve na nossa pele?
Que pedras
as mais completas
servem para atirar às pedras?

Só podem ser
pedras sibilinas

quinta-feira, 24 de julho de 2008

NENÚFARES




aparentemente inerte



sobre as águas paradas



a sensibilidade irreverente



dos nenúfares




sábado, 19 de julho de 2008

CHOREI COM OS CÃES




Conduzia na estrada do Barranco do Bebedouro - serpenteada, estreita, iluminada pela lua-cheia.

De repente um vulto na minha rota. Não pude evitar. Só o vi pelo retrovisor.

Ao contrário do que se diz as fotografias não substituem as palavras, mas esta sangrou-me.

Saí do carro e ajoelhei-me junto do animal, um rafeiro alentejano, lindo, que ainda me olhou nos olhos e disse baixinho
- É pá - mataste um cão sem dono.

A lua-cheia inundava o silêncio e eu levei-o ao colo para dentro do carro.

Quando cheguei a casa, só pude fazer o que fiz.

Chamei o Dique e encarreguei-o de convocar todos os cães da aldeia. O funeral foi marcado para a meia-noite.

Todos compareceram.

Solidários, quatro amigos mais corajosos ofereceram-se para escavar a sepultura, num canto da horta, onde espontâneas medram as hortelãs.

Todos reunidos no silêncio.

Um uivo comovido despoletou um choro coletivo.

Só o Dique não chorou. Trazia na boca uma papoila
que largou em cima da sepultura.

quinta-feira, 17 de julho de 2008

OS INOCENTES SÃO PERIGOSOS



A fantasia pode intervir

na efabulação libertadora das palavras


porque todos os inocentes

são perigosos

segunda-feira, 14 de julho de 2008

AS DUAS GAMELAS DE SÓCRATES

Alberto João afirma alegremente

que a oposição ao governo da república é ele

enquanto Jaime Gama reafirma elogios

ao chefe da ilha da Madeira.

Sócrates apoia Alegre à esquerda e Gama

à direita - isto é,aposta em duas gamelas eleitorais.

sexta-feira, 11 de julho de 2008

MÃE


pintura de Almada Negreiros

Uma vez mais acordei

a respirar por guelras

para surpreender os pássaros marinhos

que remam contra o vento

a sombra pendente das árvores

que escuta o chão

nesta vereda de peregrinos



Se a morte existisse

os teus olhos clarinhos

não seriam tão azuis

nem se demoravam

tão andarilhos

nos meus



e só tu sabes porquê

minha mãe

segunda-feira, 7 de julho de 2008

A VER DANÇAR AS PALAVRAS



Nas pedras do chão há cristais
cheios de pó e movimento
que seguem itinerários
vagarosos

que tropeçam
antes de serem brilho
expressão musical
para espanto dos pássaros
antes do voo

As pedras do chão
perdem a inocência
quando se aproximam dos cristais

Será do pó em movimento
ou dos meus pobres olhos
que espantam os pássaros?

Já não me pergunto
se nos alimentamos de poemas e destinos
neste chão onde me apetece

ver dançar as palavras

sexta-feira, 4 de julho de 2008

A SELVA TEM DUAS MARGENS


A SELVA TEM DUAS MARGENS
A SENHORA APENAS ATRAVESSOU A PONTE
COMO SE NÃO ENCONTRASSE
DESTE LADO DA SELVA
EXEMPLOS COMO O SEU
Fico feliz por ter chegado aqui
por ter mudado de cela
se não ignorar os mesmos
que aguardam como ela
deste lado da selva
a mesma ponte

quinta-feira, 3 de julho de 2008

Á VISTA DAS URNAS


O governo da maioria esmagadora,sem respostas

credíveis para a crise generalizada que o país sofre

ao invés de assumir as suas políticas,esconde-se

no papel de vítima,esgrime como se estivesse

na oposição às oposições,em vez de governar

sem arrogância.

Na verdade as pessoas não comem estatísticas

governamentelizadas,nem entrevistas por encomenda.

O ministro da economia,iniciou um ciclo eleitoral

com visitas aos super-mercados,para ver com

os seu olhos o efeito miserável da baixa de 1%

no IVA .Constatou que os principais bens de consumo

não são abrangidos e admitiu baixar +1% lá mais

para a frente,de modo a repor os 2% que aumentou.

Deslocar-se-à de novo às prateleiras

com Sócrates,à vista das urnas.