quinta-feira, 25 de março de 2010

MAIS VERMELHA QUE OS TEUS LÁBIOS

óleo de SVETLANA NOVIKOVA



A noite carregava
a sua própria sombra
mas nós carregávamos uma noite
que não era a nossa

quando uma luz de sal
despontou nas paredes do cais
para ergueres as pálpebras
e veres claramente
espalhadas no chão dos barcos
o que pareciam ser
as últimas flores do Inverno

Tu sabias
que estavam a medrar
novas marés
quando subiste à gávea
dos barcos ancorados
para confirmar o rosto branco
da madrugada

Tu sabias
que alguém andava
a lavrar desertos
para nascer uma flor
mais vermelha que os teus lábios




sexta-feira, 19 de março de 2010

MÃOS VERTIGINOSAS







Nos meus dedos as tuas mãos
são vertiginosas
capazes de criarem asas
para voarmos quase imortais

mas hoje inconciliei-me
com as tuas mãos
porque sufocaste um pássaro
ferido na voz
e desenhaste no chão
a dor que sentimos

Eu conhecia mal as tuas mãos
mas quando as vi nos meus dedos
a rebentarem em flor

perguntei-me

É preciso matar um pássaro
para nascer a primavera?




sábado, 13 de março de 2010

SEM MUROS NEM AMOS




Tinhas um nome secreto
para acordar os pássaros
mas deixavas cair um sinal
muito antes dos barcos ancorarem
lá onde costumo pegar ao colo
os poemas e partias

No domínio dos silêncios interditos
desvendavam-se as escarpas
quando florias sem muros nem amos
no chão do Inverno
lá onde desmorono as arestas das palavras
só para te ver chegar e partir

tão secreta que nem eu sei
como envelhecemos assim
inscritos na rasgada escarpa
onde demorados
ainda hoje
dormem os pássaros

quinta-feira, 4 de março de 2010

NO DECLIVE DOS TEUS OLHOS

                                                                               RENOIR



Nos dias que se repetem desiguais
chovias inteira

Há dias assim
a gotejarem sílaba a sílaba
no mais íntimo do corpo

exactamente o que sobra de um traço
onde tento decifrar
porque se desmorona a água
em pleno vôo
e a chuva cai

mesmo quando flui
no declive dos teus olhos