domingo, 25 de dezembro de 2011

O CEGO DAS ESQUINAS




                                            Publicado no meu " CAÇADOR DE RELÂMPAGOS"



Digo-te a bruma coada na cidade, para êxtase do porvir. Incito-te ao levantamento do chão, onde adormecem lábios e pedras em murmúrios e salivas - só para te ver transgredir as pautas.

Eu digo-te uma luz ao fundo, protegida por sombras e sons, numa campânula em arco.

Repara no cego.

Repara no cão.

Quando chega a casa - imagino um cubículo de madeira - o cego das esquinas mergulha as mãos no saco das bofetadas, retira-as para o tampo da mesa e conta o abandono a que o votaram em cada moeda coitadinha.

É o cego das esquinas. O tempo de rastos.

Quem anda a montar o tempo?

São os donos dos prédios altos que fazem esquinas para cegos.

São os fazedores de cegos, os vendedores de concertinas.


domingo, 18 de dezembro de 2011

O NATAL VAI COMEÇAR





                                                            Publicado no meu "CAÇADOR DE RELÂMPAGOS"



O Inverno faz as pessoas recolherem às cavernas para melhor se amarem.
Sacode-se nas árvores penadas, inventa polícromos arco-íris, manifesta-se lúcido contra a perfeição, faz trejeitos ao rosto. Ri-se nos olhos de toda a gente.

Lá no alto, por cima das nuvens de chumbo, levanta a voz dos relâmpagos e às primeiras pancadas de Moliére, abre o pano. Vem ao palco e anuncia:

- Senhoras e senhores, a fábula " é uma pintura onde podemos encontrar o nosso retrato" .
- Que dia é hoje?
- Silêncio.
- Senhoras e senhores, ides assistir à mais fabulosa história da nossa estação.

As luzinhas furta-cores são as mesmas. O mesmo barro, o mesmo pinheiro, o mesmo musgo, as mesmas pedras. A mesma estrelinha na carapinha do mesmo presépio. O mesmo rebanho, os mesmos pastores, a mesma palha, o mesmo bafo.

Ides ser cúmplices dos animais, dos anjos que vão cair pelas chaminés nos sapatinhos dos meninos ajoelhados - até ao momento em que o galo cantará.

Lá fora as ruas estarão um sonho - até nos olhos colados dos outros meninos, nas montras do céu.

Tudo será luz nas casas iluminadas, nos corações vibrantes - menos nos olhos sem abrigo.

Vai chover. Amai-vos uns aos outros.
Eu sou o Inverno e o Natal vai começar.


quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

SOPRAR O VENTO CONTRA O VENTO





Se não adormecer nos teus lábios
com o ar em movimento
o vento desalinhado
a chuva a cair abrupta
em bátegas de luz e sombras
nas paredes da escarpa

irei construir um barco
para as aves
cumprirem os trilhos do voo
recolherem
os contornos da noite

Transportarei o sorriso
das estrêlas
na palma das mãos

mas se o vento não passar

ai se o vento não passar

só as palavras em branco
irão soprar as gáveas
do barco

soprar o vento
contra o vento






sábado, 10 de dezembro de 2011

CAMINHO SEM MARGENS







Pelas fissuras de acesso à casa
os pássaros escarpados
recusam suicidar-se
por um grão de areia

têm por hábito beijar as pedras
quando a noite se deita
no brilho dos cristais

mesmo de olhos fechados
e luas novas

Aqui às mãos cheias
o mar revolto
bebe a água das fontes

mesmo que se desmoronem as arestas
onde emerge apócrifo
passo a passo
em desassossego
este caminho sem margens


domingo, 4 de dezembro de 2011

CÍRIOS






Nas arestas da escarpa
aprendemos quase inocentes
a arredondar pedras
para não ferir o voo dos pássaros

caminhamos num abraço de limos
ao som das marés
e descobrimos debaixo da pele
que nos abriga
tanta luz
por desbravar

resistimos nas areias movediças
desvendamos rotas conhecidas
atiçamos relâmpagos


círios
mastros
que se levantam



terça-feira, 29 de novembro de 2011

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

AI DOS QUE NÃO SE OUSAM AGITAR







" Aqueles que defendem a liberdade mas, contudo, desprezam a agitação
são homens que esperam recolher sem lavrar a terra - que querem chuva
sem trovões e sem relâmpagos "

(citação de Frederick Douglass) 1818



quarta-feira, 23 de novembro de 2011

EM FAVOR DOS SUBÚRBIOS OFENDIDOS







Contra o descalabro social imposto ao país

nesta europa sem rosto humano

Em favor dos subúrbios ofendidos



quinta-feira, 17 de novembro de 2011

BARCOS DE PASSAGEM



                                                         DALI
                                                         


Imponente e doce no fervor dos silêncios
produzias saberes incendiavas pedras
eras um rio abrupto
a desbravar margens

e eu soltava-me vertiginoso
no teu corpo lìquido
aprendia a navegar

Quando tateavas brumas
de olhos abertos não vias nada
mas vencias espaços esquinas e becos

eras um rio de beber
às mãos cheias por entre os dedos
corpo fluido no refúgio das águas

sussurro de harpas
por toda a escarpa
véu de noiva
luz de fósforo
a alumiar destinos improváveis

barcos de passagem



sábado, 12 de novembro de 2011

SOMBRA DE LUZ




                                                                   MAGRITTE


Quando despertei
para a árvore
que ajudei a plantar

nos espelhos da memória
chovia uma sombra de luz

desejos paisagens sons

e foi assim
neste equilíbrio
fugaz de assimetrias
que inscrevi no tempo
um espaço
para agitar o vento

mares salivas flores de sal

e foi assim
a prumo nos mastros
em desassossego de barcos
que organizámos jardins
bandos de pássaros
relâmpagos

Quando despertei
vesti o melhor fato
só para te ver

e tu lá estavas
sombra de luz

domingo, 6 de novembro de 2011

OUSAS SER LIVRE






Ao vento desgrenhada
nas palavras soltas
a desbravar caminhos

de ti escarpa
apenas sei que és a mais abrupta

mas quando traço
um olhar vertiginoso
no teu corpo
nada se perde

nem o vento que bate à porta

Entras e sais
mas deixas um rasto
nas paredes da casa
inscreves no tempo incerto
rotas de barcos
seguras lemes gáveas e lumes
com a firmeza das mãos

Quando te despes de ti
apenas sei o sopro desalmado
no fulgor dos pássaros

ousas ser livre

e já é tanto


terça-feira, 1 de novembro de 2011

OLHOS REMOÇADOS








No tempo em que crescíamos
a noite bramava tão parda
que nem parecia noite

De súbito um frémito de luz
pestanejou nos mastros do cais

o mar restolhou

e eu vi claramente
os teus olhos remoçados
alumiarem as águas

Após tantos relâmpagos vividos
julgavas estar preparada
para voar

mas os pássaros ainda aprendiam
a ter asas



 


terça-feira, 25 de outubro de 2011

UMA FLOR VERMELHA NAS PAREDES DO CAIS








Não sei quem és
mas pelos gestos vieste por bem
rasgar o vento com as mãos
a neve dos meus cabelos

e eu cansado de florestas apócrifas
das palavras em bando
comecei a plantar árvores

vi os pássaros regressarem em acordes
à luz das noites que não dormem

Na partilha de horizontes
o amor é revolucionário

voa ousa nos mastros mais altos
garatuja búzios de sons
intervem por causas
muito para lá das utopias
e se levanta resiste
ao pôr do sol

mesmo que os barcos entristecidos
estilhacem nos espelhos da água
algumas pedras com vida por dentro

Registo por um instante
o ar que nos move

pinto com a boca
uma flor vermelha
nas paredes do cais



quinta-feira, 20 de outubro de 2011

ETERNOS A PINTAR SOMBRAS



                                                                  Ana Luiza Kaminsky



Regressámos ao sítio
onde crescem silvestres buganvileas

Foi aí em recato
que rasguei o que julgava ser um poema

Lá no cimo da Arrábida
em visita guiada
aos azuis do Sado
no mais íntimo dos silêncios
observei a anatomia
dos teus gestos
quando te revelaste
quase ninfa
a invadir impossíveis
ao alcance dos dedos

Ali ficámos eternos
a pintar sombras
que se alumiam

a inventar flores amanhãs e outros relâmpagos



quinta-feira, 13 de outubro de 2011

VERDADES IMPROVÁVEIS






Inesperadamente desenhei uma flor
soltei-lhe as pétalas

cadenciadas
silvestres
musicais
neste chão de marés

Foi preciso agarrar o vento
pelas tranças
esculpir um grão de areia
para a vida despontar num sopro
e a luz de corpo inteiro
se libertar pelas fissuras da pedra

Inesperadamente
antes da chegada dos belos relâmpagos
desenhei uma flor encarnada
que se desfolhou
para resgatar memórias
e outros silêncios

Foi preciso calar os cães
convocar os pássaros

surpreender-me com a evidência
e construir de novo
verdades improváveis



 

sábado, 8 de outubro de 2011

GUIADA PELO MEU CÃO




Quando o vento em torvelinho
se escancarou nas águas
abriram-se janelas de luz
neste chão de marés
para tu passares

Pelos sinais
desobrigada sereníssima e sem quebrantos
despertaste os barcos
numa carícia de tremulinas

Eras tu senhora
guiada pelo meu cão

 


segunda-feira, 3 de outubro de 2011

À PERGUNTA DE OUTROS MARES




                                                                       DELACROIX

Quando foi urgente criar um deus
as uvas ainda não estavam maduras
no corpo das videiras

Inocente subiste ao púlpito
das vinhas decepadas

improvisaste um sermão
ergueste o cálice
e a companha exausta aprendeu
que nada é perfeitamente inútil

Após as vindimas
bebemos do mesmo vinho

Foi quando enfunaste as velas
começaste a despontar relâmpagos
nos mastros mais altos

quando afloraste o chão com um beijo
partiste sem destino
por sobre as águas revolto

à pergunta de outros mares



segunda-feira, 26 de setembro de 2011

FOLHAS PERSISTENTES





Celebro no mais íntimo da pele
a exuberância aprumada
da árvore ao fundo
quando acorda a cantar
e adormece com os pássaros
no outro lado do cais

quando desponta no deserto
esculpe grãos de areia com rosto
e se levanta nas dunas
contra o vento

Celebro os contornos da luz
as esquinas e os becos
no rasgo lúcido de um traço

quando se desnudam na tela
espaços em branco
mãos vertebradas por todo o corpo

frutos silvestres
folhas persistentes
a vasta sede


terça-feira, 20 de setembro de 2011

APRENDIZES DO VOO



                                                           Autora do oleo - blueangel - "linguagem dos pássaros"


Quando te disse
os nossos milagres são fáceis de explicar
o Outono entrou no corpo
das romãzeiras
e ao sabor de um gesto simples
brotaram na tela
traços de aguarelas

Foste o meu modelo preferido
só porque trazias no regaço
inquietudes de pétalas

e o mar ficou mais azul

e os barcos mesmo desfolhados
continuaram a remar
na flor dos relâmpagos

Quando te disse
meu amor como te chamas?

transgredimos tantos silêncios
que ainda hoje
quando te pinto
somos água de beber
na boca das sementes

tão sábios aparente mente
à tona dos pássaros
aprendizes do voo
a contar pelos dedos
bagos de romã



quinta-feira, 15 de setembro de 2011

AREIAS MOVEDIÇAS




Quando o sol projectou no chão
uma vara de sombras em movimento
para os barcos não se perderem

o natural ciclo das marés
tresmalhou a maturação dos frutos
agitou o latido dos cães
crucificou-nos a vida
mais que os sinos nos campanários
a rasgarem silêncios
e o teu corpo cansado
numa base de areias movediças
inventou uma ampulheta
para medir o tempo

e nós passámos a ser escravos

até um dia os barcos se perderem
no canto livre dos pássaros


quinta-feira, 8 de setembro de 2011

OUTRAS MARÉS





Ainda o corpo da baía
não tinha dado os últimos passos
já o rio desaguava perfumes de algas
salivas e alguns barcos inteiros

Sonâmbulas respiravam
no pulmão das marés
algumas garças conhecidas

nidificavam sonhos nos sapais

e as faluas reconstruídas
dardejavam ventos
rente aos moínhos

Ainda o corpo da baía
era de barcos e garças
já as mós de pedra
se moviam
na boca das sementes

cresciam no silêncio do pão
outras marés



segunda-feira, 5 de setembro de 2011

LÁGRIMA SOLTA




Quando a estátua
deixou de ser estátua

eu vi

uma lágrima solta
nos olhos
da pedra




domingo, 4 de setembro de 2011

DO VENTRE ATÉ À FOZ




Neste chão de aceiros improváveis
movimentam-se barcos e afectos
sementes que exultam
memórias remos e passos

Ainda hoje este espaço
de fragatas faluas e sapais
é exiguo
para tantas vozes que se erguem
como os pássaros

Neste pomar de águas correntes
ascendem perfumes de revérberos
que alumiam margens
e temporais

do ventre até à foz



domingo, 28 de agosto de 2011

TANTA LUZ


                                                                          Gaudiol

 

Junto ao portão
os cães ladravam
aos outros cães

porque havia um portão
de faúlhas
e a noite acordava
com pássaros claros

E agora?

neste restolho de latidos
e gestos inacabados
que hei-de fazer
a tanta luz?

que hei-de fazer
quando te deitas
nas escadas do templo
a tecer fios de música

e os cães não se calam?



sábado, 20 de agosto de 2011

DULCÍSSIMA


                                                                            óleo de Jean Jaques Henner

 

Por falta de um sopro
no marasmo do cais
adormeciam barcos

banhavam-se em salivas
à vista dos mastros
quando amanhecida
silaba a silaba
junto ao pomar dos medronheiros
numa cadência de asas e passos
adocicavas na margem
imaculadas claridades

Com o tempo verifiquei
que eras tu vertebrada metáfora
a folhear um compêndio de azuis
sem destino

eras tu dulcíssima
tão líquida por entre os dedos
que adormecias os barcos



domingo, 14 de agosto de 2011

NEM TODOS OS CÃES SÃO DE BARRO (5)





                                                    publicado no meu PARA LÁ DO AZUL

Os cães choravam em silêncio
e eu não sabia porquê

Pensei no pobre limoeiro a afundar-se
lá onde nidificam toupeiras
ao entardecer
na estrêla persistente
que viceja à noite no portão
nos olhos claros de um certo azul
que ilumina a casa
no desfolhar emsombrecido
das roseiras

Vasculhei tudo
invadi searas proíbidas
até ao mais íntimo da pele

pó sombras sonhos

Perguntei-te - quando desaguas?

e tu desaguaste à janela
a marejar entristecida
e eu não sabia porquê

Foi quando os cães se levantaram
para soltar os pássaros



domingo, 7 de agosto de 2011

NEM TODOS OS CÃES SÃO DE BARRO (4)





Quando olhava para os céus via um abismo azul que a atraía e talvez por isso sempre que assistia a um concerto de pássaros despertava para o desejo de voar.

Limitada aos seus gorgeios na procura quase obsessiva de apanhar um pássaro já tinha experimentado tudo - quase tudo.
Subiu árvores inventou destinos empoleirou-se nas escarpas quando o vento soprava forte nas piores estações - até no brilho lúcido dos olhos dos ratos quando indecifráveis trepavam paredes e desapareciam pelas fissuras do ar em movimento.

Um dia ouviu como nunca tinha ouvido vozes a espargirem sons como se fossem palavras a estilhaçar silêncios.

Agachou-se debaixo da figueira paciente como sempre não para voar mas para cumprir um desígnio - comer um pássaro.
Estava-lhe no sangue querer voar mesmo sem asas. Comer um pássaro.

Na verdade se os rios insistem correr para os mares porque não comer um pássaro fechar os olhos e voar a estilhaçar silêncios?

Agachada debaixo da figueira passou uma eternidade a ouvir gorgeios e a vê-los de ramo em ramo a comer figos e a tracejarem horizontes.

Entristecida sentiu-se uma gata a imaginar-se pássaro a regorgitar memórias que não passavam do chão.

Uma vez mais foi assim no êxtase de um belíssimo concerto de gaios e melros.
Inexplicavel mente sentiu um arrepio no corpo a invadir-lhe a alma - e foi assim num rasgo de lucidez que concluiu

a vida mesmo com fragilidades pode ser mais que o voo de um pássaro mesmo quando se juntam para cantar.

E foi assim que assumiu a sua condição.

Filou o auditório e lançou~se vertiginosa sobre um ratinho do campo que atento fruía do grupo coral.

Abocanhou-o sem o ferir.
Cabisbaixa transportou-o para o alpendre onde dormitava o Dique.
Miou com o rato na boca.
Chamava a atenção do Dique que se levantou com outros azuis nos olhos.
O Dique lambeu-lhe uma orelha abocanhou-a sem a ferir e transportou os dois para debaixo da figueira onde ainda permaneciam tenores a improvisar infinitos do belo canto que nos ensinavam a voar.

Deitámo-nos a ouvir o concerto dos pássaros
até adormecerem os ponteiros do relógio .




domingo, 31 de julho de 2011

NEM TODOS OS CÃES SÃO DE BARRO (3)


                                                     reconstruído do meu CAÇADOR DE RELÂMPAGOS"

... enquanto aquele anjo permanecer nas areias, bem pode o vento soprar.

- O cão ou o velho?

Lentos, trôpegos, com os pés a tracejarem  caminhos de sempre, todos os dias aquelas almas percorriam memórias.
O cão mais velho que o dono  - era o guia, a sua bengala de cego. 
Pela orla da praia, desde a gruta onde viviam até à colossal duna, abrupta sobre as águas, as aves marinhas mergulhavam a pique - esbracejavam asas só para os salpicar - e eles lá iam , serenos, livres, sem palavras - imensos.
No ar cálido, o sussurro dos silêncios embalava-lhes os passos num concerto de maresias.

Chegados ao topo da montanha, era sempre assim. O velho afagava as orelhas do cão e o cão lambia-lhe as mãos.

Sentados nas areias respiravam infinitos - o perfume das algas. Adormeciam por instantes para logo despertarem o voo das aves. 

Ao longe, muito ao longe, inesperadamente, alguém de um barco bramou 

- Fuja - a duna vai desmoronar-se

Impertubável respondeu baixinho - para não acordar o cão

- A duna sou eu?



terça-feira, 26 de julho de 2011

ATÉ AO INICIO DAS MÃOS




Já tinham colhido as flores do jardim
mas tu cumprias um caminho
desaguavas como um rio
e eu não sabia que respiravas
à flor da pele
por todos os póros

Muito antes de me ajudares
a plantar uma árvore
procuráste a margem

tão líquida por entre os dedos
construiste um corpo uníssono
contra todos os destinos

Encontrei-te com um simples toque
numa folha de papel
a vaguear no espelho das águas

dedos nos dedos
até ao início das mãos



terça-feira, 19 de julho de 2011

NO OUTRO LADO DO CAIS



Sem repouso nem ameias
contra o vento que faz
um barco luz
na sede das águas

acorda madrugadas
ao romper dos pássaros

Ao longe
numa rota apócrifa
tilintam trinados que trinam
consistentes nos teus dedos
em acordes de alaúde

Ao longe
onde me ergo
rumo remo voo
numa paleta de sons

vejo-te acenar
a este barco
carregado de velas
á janela

tão livre
no outro lado do cais





quarta-feira, 13 de julho de 2011

NEM TODOS OS CÃES SÃO DE BARRO (2)

                                        publicado no meu "Caçador de Relâmpagos"  (reconstruído)

                      

... conduzia na estrada do Barranco do Bebedouro - serpenteada, estreita, iluminada pela lua cheia.
De repente, um vulto na minha rota que não pude evitar. Só o vi pelo retrovisor.

Ao contrário do que se diz, as fotografias não substituem as palavras mas esta sangrou-me.

Sai do carro e ajoelhei-me junto do animal, um rafeiro alentejano lindo, que ainda me olhou nos olhos e disse baixinho

- Camarada mataste um cão sem dono.

A lua cheia inundava o silêncio e eu levei-o ao colo para o interior do carro.

Quando cheguei a casa, só pude fazer o que fiz. 
Chamei o Dique e encarreguei-o de convocar todos os cães da aldeia. 
O funeral foi marcado para a meia-noite. 

Todos compareceram 

Solidários,  amigos mais corajosos ofereceram-se para escavar a sepultura num canto da horta, onde espontânea medra a hortelâ.

Todos reunidos no silêncio quando um uivo comovido despoletou em choro.

Só o Dique não chorou.
Trazia na boca uma flor vermelha que largou na sepultura.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

NEM TODOS OS CÃES SÃO DE BARRO (1)



Após longos tempos na cidade a ver o mar pela trapeira decidiu arrumar os tarecos e partir.Comprou um cão mais um punhado de terra.Construiu um casebre um canil um galinheiro e uma horta.
Começou a apreciar as estrelas o cantar dos pássaros silvestres o rumor das árvores.Aprendeu a assobiar com o vento.
Levantava-se cedo só para ver o nascer do sol dormia de tarde e levantava-se só para ver o pôr do sol.Trabalhava à noite a ouvir jaze.Tinha finalmente o horário dos padeiros.
De quando em vez visitava o café do senhor Abílio para saber como plantar uma couve se o cão podia comer entrecosto que bolbos floriam em cada estação e àcerca do míldio a propósito de umas parreiras que medravam dispersas no terreno.
Nunca mais quiz saber da cidade.Chegou mesmo a conhecer o nome dos pássaros pelo seu canto.Não amava mas estava apaixonado.
Um dia o cão que era de barro disse-lhe
- Vê lá se me pintas de azul estou com saudades do alto mar.
- Também tu cão?




sábado, 2 de julho de 2011

A ROTA DAS AVES



Nos sapais onde nidificam
as garças
eram simples de explicar
as nossas pátrias

Ali nos despíamos
e habitávamos
horas longas

até a noite nos transportar
para outras cores
num passo de dança
por sobre as águas

Nos sapais
ao ritmo das marés
(e)ternos
até os cães uivarem nas margens

Corría-nos a maresia nas veias
cumpriamos a rota das aves



domingo, 26 de junho de 2011

DESVENDAVA-TE



Sempre que improvisas acordes
gosto de ouvir-te em silêncio

indecifrável
quase inocente
a libertar os mais contidos desejos

eterna por um fio
à luz de um fósforo

Se soubesse explicar
o movimento das sombras
a dissonância do relógio de pêndulo
o chão dos barcos a óleo
nas paredes da casa

pegava-te ao colo poema

desvendava-te


domingo, 19 de junho de 2011

O FIM DA TARDE



                                                    Oleo de Vladimir Valegov      

Quando nos mastros mais altos
das escarpas
as bandeiras em desassossego
caminhavam sibililinas
por uma nesga de sol

tu eras um rio
contra a vontade das águas
a desaguar

margens
pássaros
barcos
sedimentos

à procura de uma nova expressão
para todos os azuis

Ainda hoje não te descobri
mas estou a ver-te aqui dos mastros
tão infinita
sentada no cais

Um dia vou encontrar-te
antiga
olhos hasteados

a construir o fim da tarde




segunda-feira, 13 de junho de 2011

ETERNAMENTE A RESPIRAR



                                                       (publicado 2008 "que fizeste das nossas flores"


Nem todos os jacarandás
rebentaram em Maio
mas tu cumpriste
o ritmo das estações
contra o tempo que faz

Vestiste-te de púrpura
com cheiro a hortelã
sentaste-te no meu silêncio preferido
dedos esguios em flor a crescerem
nas teclas do piano

Nem todos os jacarandás
rebentaram em Maio
porque não existem horas para amar

porque é possível pintar
uma flor com a boca
na tua boca

e ficar assim
eternamente a respirar



terça-feira, 7 de junho de 2011

CAMINHAR NA ÁGUA

poema reeditado

Imaculada a noite
que nunca dorme
no sossego da preia-mar

Talvez por isso
te veja à tona
arredondada no manto do leito
com um andar baloiço
quase ninfa
púrpura
navio
rio acima a despontar faúlhas

Imaculada a noite
que não dorme
nesta branda tempestade
transporta no teu corpo
um sinal
de cores lúcidas
sedento de madrugadas

Estou a ver-te
asa flamejante
a rasgar um clarão de azuis
sonhos e amanhãs
a entrar efémera no poema
rio acima
dissonante

Meu amor
minha noite de alvoradas
como é bom caminhar
na água
pelos nossos pés



segunda-feira, 30 de maio de 2011

QUE FIZESTE DAS NOSSAS FLORES?



                                                         Reeditado         
                                                                       

As árvores viajam
na sombra do verde
um sussurro de folhas
e tu foges dos ramos

amanheces tão distante
que nem os meus olhos
descobrem os teus gestos

As árvores viajam
onde acontece a sombra do fruto
no chão
e os pássaros sem amos
deixam que a sombra
se rebente

Meu povo
que fizeste das nossas flores?





terça-feira, 24 de maio de 2011

VESTIDA DE NEGRO





Quando precipitada a noite
bateu no chão
os cães dormiam
sonhos profundos

Pelo restolhar
das cerejeiras
só podias ser tu
vestida de negro

a  roubar-me
as cerejas
que te queria oferecer

Não fosse o silêncio
se doer
também eu à noite
iria roubar estrêlas



quarta-feira, 18 de maio de 2011

OLHOS DE ÁGUA




Ainda não tinham despontado
todas as pedras
quando subi o teu corpo
pelas veredas mais íngremes
até chegar ao cimo da escarpa

onde estavas
a desenhar infinitos
a pestanejar amanhãs

esquecida que ondulavam verdes
expostos ao vento
pássaros silvestres
tão verdes
que peregrino me fiz ao mar
das searas

para colher os teus olhos de água

plantar uma árvore
na palma das tuas mãos




quarta-feira, 11 de maio de 2011

TÃO NUA POR UM INSTANTE




Estavas a tentar apanhar um pássaro
com a boca
uma sombra vertebrada
à luz do dia
esquecida da anatomia das formas
que circulam nas fragas

e eu fascinei-me
no teu corpo efémero
poisei em desalinho
na vertigem dos espelhos

precipitei-me num excesso de voo
mas encontrei-te

a pintar o vento
contra o vento

a sorrir nas minhas pedras

tão nua
por um instante
descoberta de azuis



quinta-feira, 5 de maio de 2011

O CHÃO ONDE ME DEITO





No alpendre ao piano
por baixo do ninho das andorinhas

num ritmo lento
cadenciado
o fascínio singular dos teus dedos
explode nas teclas

cores
jardins
luz

rasga a pedra
percorre o corpo
a pauta

nos recortes da chuva

canta
azul
ao espelho

espuma desgrenhada
o chão onde me deito



sexta-feira, 29 de abril de 2011

" TODOS OS SONHOS DO MUNDO "


seixal - foto de AUGUSTO CABRITA

Olhei um pássaro nos olhos

só depois partilhei o voo
sem quebrantos
a imensa sede

pequenos sinais que se ateiam

silvestres
profundos
azuis

até os infinitos tangíveis
se libertarem
por um fugidio grão de areia

Se os olhos do pássaro
não se tivessem suicidado nos meus
hoje mesmo seriam possíveis
" todos os sonhos do mundo "



segunda-feira, 25 de abril de 2011

MÁRIO SOARES OFERECE AO PAÍS UM COELHO NA PALMA DA MÃO





O magestático dr. Soares , um estratega que deseja ficar na história à esquerda da sua prática política - impôs ao país uma europa não sufragada que hoje condena contra a matilha dos mercados estranguladores das pequenas economias.

O dr. Soares que hoje sacode a água do capote - agachou o país - mas hoje pontifica a favor dos agachados - na mesma europa que ajudou a construir - a tal solidária e amiga que compra a 2% e nos empresta a 6%.

Consta que o dr. Soares não gosta do Eng. Sócrates mas aprecia o dr. Coelho e o dr. Nobre.
Consta que  o dr Cavaco não gosta do dr. Coelho nem do dr. Nobre.
Consta que o eng. Sócrates não gosta do dr. Soares nem do dr. Nobre mas aprecia o dr Cavaco.
Consta que o dr. Soares e o dr. Cavaco não gostam de ninguém - a não ser de si mesmo.

Sendo assim como consta - não tínhamos necessidade de pagar à troika do fmi para desgovernar o país. A troika já existia cá dentro - já existe cá dentro.

Só nos faltava agora os dizeres do dr Soares  - magestático e estratega - a oferecer-nos com elogios exuberantes - um Coelho na palma da mão.


segunda-feira, 18 de abril de 2011

MAIS VERMELHA QUE OS TEUS LÁBIOS



                                                      Publicado em 2010 na revista SEARA NOVA

A noite carregava
a sua própria sombra
mas nós carregávamos uma noite
que não era a nossa

quando uma luz de sol
despontou nas paredes do cais
para ergueres as pálpebras
e veres claramente
espalhadas no chão dos barcos
o que pareciam ser
as últimas flores do Inverno

tu sabias
que estavam a medrar
novas marés
quando subiste à gávea
dos barcos ancorados
para confirmar o rosto branco
da madrugada

tu sabias
que alguém andava
a lavrar desertos
para nascer uma flor
mais vermelha que os teus lábios



terça-feira, 12 de abril de 2011

UM RIO DE ATEAR FOGUEIRAS



Neste barco
que ainda ontem nasceu
na palma das nossas mãos
sem pátrias àvista
quase eterno
 um fio de música
dança incógnito
até nos doermos
e as águas lamberem
os nossos passos

Se o rio deixasse de correr
ficaríamos desertos nas margens
e o mar sofria
por falta de areias

mas neste barco
cúmplices até à foz
tentamos descobrir o efémero
por entre os dedos

voamos onde se precipitam as aves
e desaguamos
como se fossemos um rio
e somos
de atear fogueiras