sexta-feira, 29 de agosto de 2014

ENCANTATÓRIAS PEQUENAS PÁTRIAS







Linda plumagem quase hulha
olhos de mel
graciosa no salto
à noite uma centelha no poleiro
inverosímil aos arrufos
íntegra a cacarejar
depositava o mais branco ovo na palha

Aparente  mente feliz
morreu hoje
a minha galinha preta
e eu só podia fazer o que fiz

ofereci-lhe palavras
encantatórias pequenas pátrias


 

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

A DESPONTAR NA VARANDA DO CAIS






Já tínhamos morrido
quase tudo
mas ainda a desnascer
surpreendemos
no espelho das águas
um gesto
pássaros a céu aberto
infinitos aqui tão perto
que nem lhes podemos tocar

Desta finisterra
efémeros partem barcos antigos
que deixam rastos
de romãs
a despontar na varanda do cais


 

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

MAIS AZUL QUE OS CÉUS






Num prodígio de asas
em disfonia com os pássaros
o mar voa

mais alto que os mastros
mais azul que os céus

nos teus olhos


 

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

O PÃO LEVEDADO







Na ausência de relâmpagos
decepadas as videiras
tentas inscrever
à semelhança das marés
um traço azul
nas paredes do cais
nas intactas noites
de lua cheia
onde florescem vivos
os contornos da memória
a desbravar arestas

o pão
levedado


 

sábado, 9 de agosto de 2014

EM DECLIVE POR SOBRE AS ÁGUAS






Na bela escarpa
à mesa do alpendre
quase tudo se vê
de olhos fechados

o dorso da serra
onde nidificam sonhos
um jardim de videiras
cães a ladrarem
quando a neblina invade o castelo
sombras amovíveis de pássaros
oliveiras
o perfume silvestre das hortelãs
o pó da azinhaga
um certo vento disponível para os lábios
uma nesga de mar
a cantarolar silvos de barcos

Neste deserto flamejante
povoado nos apeadeiros
esculpido em grãos de areia
as palavras amadas
tentam implodir
para acordar silêncios
com vida por dentro

Na bela escarpa
contra todos os destinos
a lavrar pedras com as mãos
em declive por sobre as águas
voeja
na mesa do alpendre
uma folha de papel


 

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

O PÓ DO TEMPO


             


Inesperadamente acordei

coloquei o teu travesseiro no meu travesseiro
liguei o rádio
fumei um cigarro
abri a porta do relógio de pêndulo
para dar corda ao tempo
e ver-te passar

soprei os ponteiros e voaste
tão longe
que só um dia te encontrei
na areia da praia
a olhar um barco
que nunca existiu
a não ser quando um pássaro distraído
em confluência de rotas
transportou o vento nas asas
e pousou em silêncio
no teu olhar

lembras-te?
lembro

na rebentação das marés
onde se enleiam sargaços
começámos a soletrar pelos dedos
palavras excessivas belas imensas

a erguer das cinzas
o pó do tempo