sexta-feira, 27 de março de 2015

INACABADA FLOR DE ABRIL



                                                                      reconstruído


Hoje vi com os meus olhos
uma santa mulher
asfixiar um pássaro nas mãos 
só para desenhar no chão
a dor que sentimos 

chamei-a
para deixar nas areias
um beijo côncavo
até a memória arder
os últimos barcos
e as algas discernirem
de olhos abertos
todos os ritmos das marés

chamei-a
para esgrimir contra
a invenção dos destinos
erguer o seu corpo
recolher todos os grânulos disponíveis

Hoje vi uma mulher amada
esculpida na praia
a despontar nas areias

inacabada flor de Abril


Eufrázio Filipe

terça-feira, 24 de março de 2015

HERBERTO HELDER


                                                             1930- 2015          


A poesia foi o grande apeadeiro da sua vida. Poesia que reescrevia em cada livro para conforto das palavras. Poeta de galáxias, escarpas e mares infinitos, foi visita assídua de quotidianos, silêncios em voz alta. 
Morreu o Herberto de tantos ofícios,  vive a sua poesia. 

Obrigado por todos os instantes. 

domingo, 22 de março de 2015

A VOZ OCULTA DA LUZ



                                              republicado



As pedras marinhas de tão azuis
regressam à tona
juntam-se para respirar
a paciência das aves
cumprem destinos de migalhas

respiram fundo pelas narinas do vento

Viris e soltas povoam afluentes
puríssimos novos celeiros

talvez por isso queiram voar
contra o rosto das palavras
ou pairar como sinais de penas

As  pedras marinhas
reanimam a voz oculta da luz
que se quer liberta insofrida

a coragem de lutar sobre ruinas




     Eufrázio Filipe

terça-feira, 17 de março de 2015

PRESOS A UM SOPRO DE VENTO




                                                       2014 (Poética editora)   Apontamento reconstruído 



... e foi assim ...

um dia escrevi o amor é revolucionário e uma senhora que esculpi nas areias da praia, logo se levantou para me dizer 
O amor é revolucionário? Interessante. Importa-se de me explicar claramente a sua ideia? 

e eu respondi que sim. 

Meu amor, nesta ilha rodeada de sonhos, se tivéssemos um barco, ai se tivéssemos um barco, como seria inútil este mar - lutaremos como somos e onde estamos. 

A senhora de pé nas areias adiantou que as realidades quando sonhadas por vezes são mais verdadeiras - e ainda acrescentou  - gostei de o ler, só é pena ser comunista. 

Olhei-a nos olhos e respondi que não queria salvar o mundo só ajudar. A poesia é um prazer para quem escreve mas um desafio para quem lê. Tudo se move até o vento. 
Por vezes um poema vale por um verso e um verso uma eternidade. 

A senhora ainda de pé disse não ter entendido mas que as palavras eram lindas. 

... e foi assim ...

neste chão de claridades, por mares nunca antes desgrenhados, subimos à nossa escarpa preferida para colocar um beijo no mastro mais alto da vida e dizer-lhe ao ouvido poemas ainda não escritos, presos a um sopro de vento. 


EUFRÁZIO FILIPE
 
 

quinta-feira, 12 de março de 2015

A SÍNTESE DA NUDEZ







Num abraço
seduzidos pela vida
secreta das palavras
escrevemos emoções
mais fortes que a razão

aprendemos a ser lentos
a soletrar pelos dedos
gestos remos e passos 
mesmo que chores 
nos meus olhos
e eu numa folha de papel

Num abraço
se transfiguram pássaros
escarpas relâmpagos
mares desgrenhados

a síntese da nudez


Eufrázio Filipe

 

quinta-feira, 5 de março de 2015

CONCERTO DE PÁSSAROS






O granizo caía abrupto nas nossas vidas,queimava-nos a alma até aos ossos. Nunca mais chovia água de beber. 
Lânguidos os rios mal desaguavam de tanto frio e solidão. O mar vadiava nas frinchas das falésias e os barcos ancorados, aguardavam nos mastros outros ventos. 
Nas ruas havia uma certa efervescência . Um respirar ofegante. 
Nas ruas as esquinas dos prédios despovoadas para os cegos abrirem os olhos. Nas árvores nem uma folha para esconder o arrepio dos pássaros. Nem um piar. Nem um sussurro. 
Ao desnascer da noite alguém acendeu um fósforo e fez-se madrugada. 
Os rios despertaram. O mar deu sinais de chamada. O vento soprou para um afago de velas e os barcos partiram para a faina. 
A Primavera por cima dos escombros convocou-nos para um concerto ao ar livre. As flores despontaram nas nossas mãos, a cantar com os pássaros, como se fossemos livres e somos. 


Eufrázio Filipe