quinta-feira, 31 de março de 2016

À BEIRA DO DESEJO





Nas fissuras menos conhecidas das pedras
navegam sargaços de cristal
move-se um coração de ave
água possuída de viagens
que o sol lambe em alvoradas

Na mais dura pedra um barco
com gestos a dardejar
desperta animal no próprio corpo
margens
voz
arestas
como se houvesse princípio para a fala

Na mais dura pedra a explosão
secreta dos corais
um pequeno sinal de vida
incontido
à beira do desejo e amanhãs
nesta pátria de náufragos
adentro

Nas fissuras menos conhecidas das pedras
uma asa suspensa
voa na luz
despe-se de tudo
participa
na desordem dos espelhos

Eufrázio Filipe (2007)

sexta-feira, 25 de março de 2016

VERDADES IMPROVÁVEIS





Na ausência de palavras
desenhei uma flor encarnada
neste chão de marés

soltei-lhe as pétalas

cadenciadas
silvestres
musicais

agarrei o vento pelas crinas
esculpi um grão de areia
para a vida despontar
num sopro
e a luz se libertar
pelas fissuras da pedra

convoquei pássaros
resgatei memórias
e outros silêncios

escrevi de novo
verdades improváveis

Inesperadamente
hoje não quis salvar o mundo

Eufrázio Filipe
 

terça-feira, 22 de março de 2016

HÁ FLORES NO CHÃO





Com olhos cheios
de pátrias desnavegadas
no fulgor das águas
reparti a escarpa
com mãos inteiras

regressei ao poema
plantei uma flor
mais vermelha
que os teus lábios
nas paredes do cais

Dulcíssimos e medrosos
os cães ladraram
ao portão da casa

soltaram os barcos
à hora dos pássaros

para desespero dos náufragos
e das Primaveras

Eufrázio Filipe
 

quinta-feira, 17 de março de 2016

SEREIAS NO SEU REFÚGIO





Feríamos a água
de tanto remar
e nem sabíamos bem porquê

estávamos no tempo dos jacintos
e queríamos inexplicavelmente
ouvir a sabedoria das marés
a respiração dos sapais
semear gestos nos sulcos da água

Clandestinos lá fomos devagar
à descoberta do princípio do mundo
prateados como os olhos dos peixes
e os arados

humedecidas pela brisa
lá estavam as sereias no seu refúgio
em lençóis de linho e púrpura
sitiadas à nossa espera
a cantar os novos impérios

e nem sabíamos bem porquê

Eufrázio Filipe

(A profanação das metáforas)

sexta-feira, 11 de março de 2016

INVENTEI UMA PEDRA





Inventei uma pedra
com vida por dentro
rasguei uma janela
para ver este chão de mar

e nem me perguntei
se os peixes em cardume
se alimentavam
de poemas ou destinos
os sinos dobravam no cais
onde rangem os mastros

Inventei uma pedra
profanei metáforas
neste itinerário sem grilhetas

vagaroso nesta pátria de náufragos
pousei nos teus cabelos
para salvar os meus olhos

Eufrázio Filipe
 

domingo, 6 de março de 2016

CAMINHOS INSONDÁVEIS





Lá no alto
enleado na paisagem
respira
transparências fugidias
palavras inquietas

estranho amante
no baloiço das marés

desobrigado de céus
e outros destinos
por entre braços de araucárias
sem ameias

lá no alto
à tona dos ventos
a soletrar pelos dedos
caminhos insondáveis

que bom este cansaço
movimento
de asas remos e passos

Eufrázio Filipe